Depois de falar tanto sobre uma série que trata do mundo dos adolescentes dos anos 70, nessa sequência de posts, é hora de comentar sobre outra, que trata do mundo dos adolescentes do século XXI.
E pra começar, dá o play na música pra ler a matéria com a trilha sonora adequada.
Como vou falar sobre coisas que acontecem muito à frente em todas as séries, já deixo avisado que é impossível evitar os SPOILERS.
Nº 3 – Glee
Criada em 2009 por Ryan Murphy, Glee é uma comédia musical adolescente, que desde o início atingiu uma repercussão e popularidade muito altas. Passada em um colégio americano, o McKinley High, ela foca nos esforços do professor Will Schuester (Matthew Morrisson) em ressuscitar e dar relevância ao clube do coral da escola. Visto como um clube para losers, Schuester vai enfrentar várias barreiras para levar seu objetivo adiante. Dessa forma, um pequeno grupo de desajustados sociais acaba se inscrevendo no projeto. Rachel (Lea Michele), uma garota nada popular, egoísta e esquisita; Kurt (Chris Colfer), um garoto sensível, e gay; Artie (Kevin McHale), um nerd cadeirante; Tina (Jenna Ushkowitz), a garota asiática tímida; e Mercedes (Amber Riley), uma garota gordinha que nunca ficou com ninguém.
A mudança do clube começa quando Will consegue forçar o aluno mais popular do colégio a entrar para o coral, o quarterback Finn Hudson, papel de Cory Monteith.
A partir disso, o “glee club” passa a enfrentar diversos desafios, incluindo a treinadora das líderes de torcida, Sue Sylvester (Jane Lynch) e suas artimanhas para acabar com o clube. O enredo então começa a trazer novos integrantes para o grupo, conforme os planos de Sue vão dando sempre errado, até que o elenco de doze integrantes do coral seja formado. A evolução do clube serve de pano de fundo para diversas tramas, que vai desde a aceitação da sexualidade, do próprio corpo, gravidez na adolescência, traição, e o inicio do romance entre Finn e Rachel.
“Porra! Glee, Moura?” Sim, é meu Guilty Pleasure. Aliás, já ouviu o Podcast 199 – Guilty Pleasures dos Seriados?
Conforme as novas temporadas vão ocorrendo, mais e mais personagens entram – e saem – do elenco. Com a possibilidade de trazer e dispensar novos alunos, Glee acaba tendo uma grande rotatividade em seu elenco, porém preservando sempre os principais, com ênfase no trio que se tornaram os verdadeiros protagonistas da série: Finn, Rachel e Kurt.
Os romances, como em toda série adolescente, são primordiais para o roteiro. E há um grande “rodízio” de casais, o que também é comum nesse tipo de produto. Porém, mesmo que namoros comecem e terminem, existe com clareza um grande “endgame” desenhado desde o piloto, Rachel e Finn. Outros casais acabaram se tornando favoritos do publico, como Kurt e Blaine (Darren Criss), Santana (Naya Rivera) e Brittany (Heather Morris) e Mercedes e Sam (Chord Overstreet), mas sem dúvida “Finchel” nunca saiu dos holofotes de principal casal da série.
Finn era a representação da bondade na série. Ingênuo, e até meio burro às vezes, ele começa com o peso de ser o popularzão do colégio, mas conforme ele se envolve mais e mais com o clube do coral, os novos amigos e com Rachel, ele revela cada vez mais seu lado “Superman”, sempre disposto a defender o que ele acha certo, os mais fracos e os menos favorecidos. Ele abre mão da popularidade para fazer o correto.
Mas a vida, ela não imitou a arte.
Bom moço e bem ajustado nas telas, Cory Monteith tinha problemas de dependência química na vida real. Foi internado pela primeira vez em um rehab ainda aos dezenove anos. Sua última internação foi aos trinta e um. Mesma idade com que o astro da série faleceu. Cory, então uma das celebridades mais famosas da TV americana e ídolo de milhões de adolescentes foi encontrado morto em um hotel, por overdose, em julho de 2013.
Glee acabava de encerrar sua quarta temporada. As filmagens da quinta iriam começar, mas a tragédia deixou todos abalados. Não apenas, obviamente, pelo problema de perder o protagonista, mas pelo envolvimento pessoal de todo o elenco e produção, principalmente de Lea Michele, seu par na tela, e fora dela. Cory e Lea levaram o relacionamento de Finn e Rachel para a vida real, e estavam namorando.
A quinta temporada foi adiada, porém produzida, e Murphy, o criador da série, já deixou avisado que ela duraria apenas até o sexto ano. E como lidar com a morte do ator dentro da série? Ryan Murphy tomou a decisão mais certa. Lidar como ela é.
Finn morreu na série.
Nenhum detalhe é dado sobre a morte do personagem. O segundo episódio lida com os acontecimentos, um mês após o passamento do personagem – e do ator. A única menção dada aos motivos da tragédia é dita por Kurt, que se tornou seu meio-irmão na série, e mistura realidade com ficção.
“Todos querem falar sobre como ele morreu. Mas o que isso importa? Um momento, dentro da sua vida inteira. Eu me importo mais em como ele viveu.”
O episódio O Quarterback é uma das coisas mais emocionantes que vi na vida, sem exageros.
Claro, já vimos dezenas e dezenas de filmes e séries que lidam com a morte de personagens queridos. Mas essa foi a única vez que vi uma série lidando com a morte de um personagem misturando a metalinguagem para falar da morte da pessoa real. É visível que o elenco, apesar de estar usando as frases do roteiro, não está atuando. A dor é palpável, real e documental.
Isso fica bastante explícito na única participação de Lea Michele no episódio. Ela surge para cantar Make You Feel My Love, de Bob Dylan, em homenagem a Finn/Cory.
E assim, Finn se despede da série, sem nunca realmente se ausentar. Isso porque o espírito do personagem nunca deixa o programa. Inúmeras homenagens continuam surgindo, episódio após episódio, como as músicas que o coral canta na final do concurso de corais, todas referenciadas como as favoritas de Finn, e Sam erguendo as baquetas que pertenciam ao quarteback no final da apresentação.
Mas, como já dito, havia outro problema. O protagonista da série não estava mais lá. Já fazia algum tempo que Glee estava tendo dificuldades em encontrar um rumo para sua trama. Com a formatura dos personagens principais no final da terceira temporada, estava complicado arrumar desculpas para mantê-los no enredo da escola. Enquanto alguns antigos se mantiveram lá com a desculpa que eram um ano mais novos que os originais, como Sam, Tina e Blaine, os formados criavam novos núcleos, como Rachel, Kurt e Santana em Nova York, e novatos foram introduzidos com o intuito de renovar o elenco colegial.
Marley (Melissa Benoist, a Supergirl), Ryder (Blake Jenner), Jake (Jacob Artist), Unique (Alex Newell) e Kitty (Becca Tobin) eram os alunos novatos, que deveriam assumir o protagonismo deixado pelos alunos originais. Mais especificamente, Marley e Ryder eram visivelmente novas versões de Rachel e Finn, com outras nuances de personalidade, mas ocupando os papéis de garota impopular e o rapaz ingênuo e bom moço.
Porém, mesmo que os personagens tenham feito algum sucesso, não conseguiram substituir os originais na preferência do público. Assim eles foram sumindo da trama até serem totalmente eliminados da série, sem maiores explicações. Ryder então não conseguiu ocupar o vácuo deixado pela morte de Finn.
Inteligentemente, a série não tentou mais fazer isso (mesmo porque a ideia com Ryder era dar continuidade a trama na escola e não realmente ocupar o lugar de Cory Monteith). Ao invés disso, deu mais espaço para os casais Kurt & Blaine e Santana & Brittany. Sam foi crescendo naturalmente no programa, e também desfrutou dos holofotes, sendo elevado a protagonista, e até ensaiando um romance com Rachel, que logo é deixado de lado.
E assim Glee sobreviveu a mais duas temporadas, sempre com a triste lembrança da partida precoce de Monteith. Aos trancos e barrancos, é importante frisar. Sem Cory para ser a corrente que uniria o elenco dos personagens originais – formados e lutando para construir uma carreira na música – e os novos, que ainda eram alunos no colégio, a história vacilou muito. O colégio saiu de cena, a série virou uma trama sobre os personagens mais velhos vivendo em NY, não deu certo, voltaram atrás, desfizeram, refizeram… não havia mais uma coerência ou um foco.
A ideia original de Ryan Murphy era que a série se encerrasse com Rachel, depois de ter conquistado o sucesso na Brodway, retornando ao McKinley High para reencontrar com Finn, que haveria se tornado professor lá, e técnico do novo clube do coral. Isso foi confirmado pelo criador da série depois que Rachel descreveu a cena no episódio que lida com a morte de Finn.
Infelizmente a tragédia da vida real impediu esse fim.
No episódio final, em que Rachel aparece ao lado de seu novo namorado na série, Jesse (Jonathan Groff), que disputava a garota com Finn na temporada inicial, a última cena reserva a última homenagem ao ator.
Sue faz um discurso. Ela diz que aquele local é um refúgio do mundo cruel lá de fora, um local onde o jogador de futebol mais popular do colégio pode se tornar o melhor amigo do garoto gay, e que a garota nariguda se torna uma estrela da Broadway.
O discurso de inauguração do auditório Finn Hudson, um lugar onde você não deve ver o mundo como ele é, mas como ele deveria ser.
Até o próximo episódio, com mais uma série focada em adolescentes, que perdeu seu protagonista.