Irmão Olho

A coluna de hoje abre espaço para a participação do Algures, que enviou esse pequenino texto sobre o que ele achou da “CRISE FINAL”, o que comprova nossa teoria de que ele está mesmo viajando pelo mundo, afinal, de que outra forma ele já poderia ter lido isso?

Crise Final de quem?
Por Algures
Livre de Spoilers, pode ler à vontade

Bem, Final Crisis finalmente chegou ao fim nos EUA (depois de inúmeros atrasos e mudanças de desenhista), e o sentimento geral da nação americana foi What the fuck just happen?

Basicamente, a galera não entendeu lhufas do que estava lendo e o sentimento de confusão foi geral. Por isso, após dar (opa) algumas voadinhas para os States para comprar as edições, resolvi fazer algumas considerações. Não é uma resenha, mas minha sincera opinião sobre a série.
Atualmente, vivemos num momento complicado em todas as mídias de entretenimento, e nos quadrinhos a situação não é diferente. Fórmulas narrativas desgastadas, personagens sem conteúdo, falta de criatividade, más decisões editoriais (ou em alguns casos, DITATORIAIS), eventos cujo impacto é apenas visual e estético e situações se repetindo num loop contínuo. No fim das contas os quadrinhos se tornaram as novelas da Globo que muitos nerds odeiam: O mesmo plot em qualquer lugar e momento, só mudando os personagens ou a época.

Muitos leitores, cansados dessa mesmice se voltaram para quadrinhos ditos “alternativos”, os chamados “quadrinhos de autor”, que são para os quadrinhos o que os filmes independentes são para o cinema e que possuem menos amarras comerciais, permitindo uma liberdade criativa do autor muito maior. Assim como muitos dos grandes diretores de cinema começaram no cinema independente, muitos dos grandes autores de quadrinhos ocidentais da atualidade começaram nos quadrinhos de autor.

Um deles foi Grant Morrison, um inglês maluco que tem como suas principais referências narrativas os mais estranhos contos ingleses, mitologia, filosofia e literatura clássica. Só isso já seria o suficiente para imaginar que um cara como esses nunca faria parte da indústria “mainstream” de quadrinhos. Mas é nesse ponto que quadrinhos se diferencia do cinema: No primeiro caso, a indústria mainstream possui personagens que fazem parte da cultura do qual elas foram criadas, alguns inclusive atingindo o mundo inteiro. Personagens como Superman, Homem-Aranha, Batman e Homem de Ferro povoam nossa imaginação desde crianças, e todo autor de quadrinhos, independente do que diga, sonha (ou sonhou) em dar sua visão para esses personagens.

Quando Grant Morrison iniciou seus trabalhos na DC, um de seus primeiros trabalhos foi a mini-série de um personagem sem muita expressão, o Homem-Animal. O trabalho impressionou tanto o editor da época, que a mini acabou sendo lançada como uma revista mensal. Uma vez que não era um personagem “principal” da editora, Morrison tinha carta branca para fazer de tudo. E daí surgiu uma das jornadas mais alucinantes de Herói que eu já vi na minha vida. Morrison transformou o Homem Animal num vegetariano e falou sobre uma porção de coisas, que iam de proteção aos animais, ecoterrorismo e invasões alienígenas à mitologias antigas e viagens no tempo. Como sempre, sua marca registrada foi escrever se valendo de referências literárias obscuras e usar a linguagem dos quadrinhos para falar sobre os próprios quadrinhos e sua indústria (a chamada “metalinguagem”, que muita nerd ouve falar, mas não sabe o que significa).

Após o Homem-Animal, Grant Morrison passou por alguns personagens DC, mas geralmente escrevendo sempre personagens impopulares (como A Patrulha do Destino, por exemplo), onde podia fazer virtualmente o que quisesse, pois isso não afetava o status Quo dos personagens realmente “relevantes” do Universo DC. Sua passagem mais falada depois do Homem Animal, no entanto, foi quando escreveu a Liga da Justiça no final dos anos 90. Nas suas mãos a equipe voltou a contar com os 7 maiorais (ou seus substitutos na época) e passou da 120ª revista mais vendida para figurar entre as 5 mais. Morrison trabalhou os grandes personagens da DC como poucos, entendendo as motivações dos personagens e mostrando porque, num universo que tem um Superman, é necessário um Batman, só para dar alguns exemplos.

E é aí que entra Final Crisis.
Mais recentemente, após a série 52, descobrimos que o Multiverso existia novamente, mas agora estava limitado a 52 terras. Morrison sempre foi um entusiasta do multiverso e da Era de Prata dos quadrinhos, isso era visível desde sua passagem pelo Homem-Animal. Nesse momento, descobríamos que Grant Morrison seria o escritor da Final Crisis, dita como “a última crise do universo dc” e “o dia que o mal venceu”. Durante o processo de construção da saga, surgiram diversos títulos que diziam ser uma “preparação” para a saga, como Countdown (outra série semanal) e Death of New Gods.

Então Final Crisis chegou. E não era, nem de longe, parecida com qualquer outra das Crises que haviam ocorrido na DC. Tampouco parecia uma mega-saga envolvendo todos os heróis. Tudo era diferente. Começava no início dos tempos, depois ia para o presente onde um deus era encontrado morto e um personagem desconhecido (pelo menos do público que lê quadrinhos há menos de 30 anos) recrutando vilões como se fosse um pastor pregando sua fé. Não tinha nada a ver com uma “Crise”, nem parecia sequer uma saga! Cadê as realidades alternativas? Cadê a adrenalina, e principalmente, cadê o quebra-pau??? Não havia nada. Ao invés disso, o que tínhamos eram diversas narrativas paralelas que aparentemente não se encontravam, uma sensação de confusão e uma impressão de que estávamos sendo passados para trás.

E realmente estávamos. Na terceira edição, descobrimos que Darkseid havia matado os Deuses e de alguma forma indo parar na terra num corpo humano e com planos de dominar o mundo. O que ele fez em uma única página, e com apenas um E-MAIL.

Final Crisis não foi uma mega-saga comum. De fato, ela foi tudo o que uma Mega-Saga NÃO É (ou não deveria ser). Ao invés de uma história rasa como desculpa para um quebra-pau entre os heróis e vilões (ou entre heróis e heróis, ou entre heróis e um vilão, ou entre heróis e aliens que se fazem passar por heróis), e sim uma história que abrangia todo um universo, contendo em 7 edições 70 anos de histórias. Além disso, refletia diversos aspectos da nossa vida, fazia referências à mitologia, filosofia, simbologia, semiótica e tinha muita, mas muita metalinguagem.

Final Crisis se tornou um ensaio sobre a própria indústria de quadrinhos, falou sobre alienação, sobre as fórmulas de narrativas desgastadas, sobre o poder da imaginação, sobre poesia. Falou até sobre música. A narrativa foi desenvolvida para que sentíssemos as mesmas coisas que os personagens, e para que começássemos a descobrir as coisas e juntar as peças conforme o mesmo fosse acontecendo com os personagens; assim, o leitor deixou de ser espectador onisciente e passou a ser um integrante do universo DC, com as mesmas dúvidas, confusões e preocupações. Morrison sabia que hoje em dia, uma mega-saga não significava mais do que heróis que morrem para serem ressuscitados depois, incidentes que não possuem impacto psicológico relevante e mudanças no Status Quo que duram só até a próxima saga, por isso fez de tudo para que essa Crise parecesse real aos olhos do público.

Em outra linguagem, como a Literatura, por exemplo, seria apenas um ótimo livro. Mas, em se tratando de histórias em quadrinhos onde o impacto visual é fundamental e determinante numa história, onde se preza ação e grandes feitos, e cujos personagens povoam nossa imaginação desde crianças, não é um bom lugar para se traçar esse tipo de paralelo.

Claro, essa não é a primeira vez que se faz isso. Watchmen fez isso e o público adorou. O problema é que, não importa o quão complexo Watchmen tenha sido, o público ainda entendia como quadrinhos. Em Final Crisis, Morrison utilizou técnicas de narração alternativas sem os clichês de arte sequencial padrão, criando um produto tão diferente e tão distante os quadrinhos que se tornou algo irreconhecível para aqueles que conhecem apenas isso. Lembram como Watchmen destruiu os super-heróis? Pois é, Morrison destruiu a narrativa de super-heróis.

Em outras palavras, é um “Macunaíma” feito para o público que gosta de Harry Potter ou um “Cão Andaluz” feito para o público que gosta de Transformers. No fim das contas, a obra é um grande exercício de imaginação, de criatividade, e principalmente de atenção, e necessitará de diversas leituras para uma compreensão completa dos eventos, mas considerando a reação do público, isso leva a questão do local e momento certo para se fazer esse tipo de coisa.

Apesar de eu ter gostado dessa reinterpretação do Universo DC, é importante ressaltar que às vezes uma idéia genial na teoria pode não ser tão boa quando executada na prática, o que acho que foi o caso. Final Crisis é uma história comemorativa de 70 anos do Universo DC, para ser lembrada e relida diversas vezes.

No entanto, Morrison parece ter superestimado seus leitores, achando que eles iriam ser incentivados a ler a revista diversas vezes, discutir com os fãs sobre o assunto e procurar as referências por si próprios. Ele queria mostrar que os leitores podia se ver livres da “equação antivida do entretenimento” que os fazem receber tudo pronto, sem esforço, que conseguiriam procurar suas próprias respostas e tirar suas próprias conclusões a respeito da história. Mas infelizmente, essa “equação antivida do entretenimento”, que transforma leitores de quadrinhos em zumbis que querem sempre ler a mesma coisa mesmo sabendo o resultado, parece tão poderosa quanto a que aparece nas páginas da saga. O problema é que não temos super-heróis no mundo real para nos tirar disso.

Foi após ler a última edição de Final Crisis que eu entendi porque, por exemplo, Michael Bay não faz filmes “cabeça” e David Finch nunca quis adaptar He-man para o cinema. Tudo no universo tem seu lugar. Essa é a ordem das coisas. Não se deve subverter essa ordem, nem tentar mudar as coisas. Assim como nos quadrinhos e nas novelas, a vida deve ser do mesmo jeito sempre, para que tenhamos a sensação de que temos o controle. Ou citando Fry, do desenho Futurama: “As pessoas não querem saber de coisas inteligentes e inesperadas. Coisas inteligentes as fazem parecer burras e coisas inesperadas as deixam com medo.”


P.S.: As opiniões expressas nesse texto são de inteira responsabilidade do Algures e Marcelo Soares não tem absolutamente porra nenhuma a ver com isso!!

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