“O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade”Karl Mannheim
Quem não gostaria de voltar a ser criança? Ter de volta o tempo para aproveitar a vida, ter olhos mais inocentes, ser feliz com as coisas simples, viver uma vida de fantasia…É engraçado que a infância geralmente é lembrada como o período de felicidade plena que nunca mais voltará. O que a gente esquece é que a infância nunca nos deixou; nós é que deixamos ela.
Ser criança é algo positivo quando falamos do passado, mas pejorativo quando falamos de presente, já repararam isso? Tanto é que “infantil” se tornou um xingamento. No mundo de hoje, a inocência, a simplicidade e a falta de conhecimento das crianças são vistos de forma depreciativa, como se elas fossem apenas pequenas ignorantes, coitadas, que não conhecem a verdadeira realidade. O mundo é difícil, sim. E não é cheio de flores, realmente. Existem problemas que não podemos ignorar, coisas que nos impedem de continuar pensando como crianças. Mas será que as coisas foram sempre assim, ou passaram a sê-lo justamente porque deixamos de ser crianças?
Quando criança, eu tive uma vida plena. Achava que era possível voar apenas com o impulso necessário (inclusive, certa feita me esborrachei todo no chão tentando correr a uma grande distância e saltando). Eu me vesti de Robin com 7 anos, vivendo em um bairro perigoso, e levei umas broncas de uns marginais porque tentei combater o crime de verdade (eles provavelmente não me fizeram nada porque conheciam e respeitavam meus pais). Eu tinha “laboratório” improvisado nos fundos da minha casa, onde eu tentava fazer experiências e criar os mais diversos dispositivos (mas não se preocupem, minhas experiências nunca envolveram seres vivos) e desmontava aparelhos eletrônicos com defeito para tentar descobrir como funcionava. Também enterrava meus animais de estimação com uma cruzinha sobre o “tumulo” e tudo, pois acreditava que toda a vida era importante e merecia respeito.
Chorei quando meu primeiro cachorro, o Fuscão Preto (sim, ele tinha o nome da música) morreu. Foi meu primeiro grande amigo não humano. Muito outros se seguiram depois dele. Esqueci de muitas coisas ao longo dos anos, mas nunca esqueci de nenhum deles. Briguei com minha irmã mais vezes do que posso contar, mas também a defendi outras tantas. Hoje, somos melhores amigos. Minha mãe e meu pai sempre tiveram que trabalhar muito para colocar comida na mesa, e eu passava minhas tardes assistindo televisão, lendo quadrinhos e me aventurando com meus brinquedos. Durante a semana só havia eu na casa, mas eu nunca estava sozinho.
Minha vida deixou de ser tão interessante assim quando me tornei adulto. Mas não muito. Isso porque, vou contar um segredo para vocês: Eu nunca consegui deixar de ser criança. Para vocês terem uma ideia, na minha infância, eu chorava sempre que pensava que um dia eu ia crescer. Eu dizia constantemente, aos prantos: “Mãe, eu não quero crescer” (é sério, vai entender de onde as crianças tiram essas coisas). Na infância, eu já entendia o que significava se tornar adulto.
Talvez por isso eu me recusei a deixar minha infância. É claro que houve momentos em que o mundo adulto tentou de todas as maneiras tirar a infância de mim. Seja quando meus pais se separaram, ou quando minha casa foi destruída devido a um temporal e tivemos que morar na casa de parentes por um tempo. Seja quando eu tive minha primeira decepção amorosa e todas as (muitas) outras que se seguiram. Quando passei pela morte de alguém próximo. Quando estudei em uma escola e conheci pessoas que iam lá apenas pela merenda, porque não tinham o que comer em casa. Ou quando eu descobri que meus amigos de infância tomaram rumos em suas vidas que o levaram para caminhos perigosos.
É, foram muitos os artifícios usados pelo mundo adulto para tirar a infância de mim. E confesso que, em alguns momentos, eu quase cedi. Quase cedi, mas nunca desisti. E assim eu sigo, não escondendo minha infância em uma bolha e deixando-a isolada do mundo, muito pelo contrário: constantemente faço-a enfrentar o mundo adulto, o que ela vence todas as vezes; em alguns momentos por pouco, outras vezes com folga, mas sempre vence. E assim chegamos a esse texto.
Ser “infantil” é um defeito. Mas não deveria. Os adultos dizem que as crianças tem muito o que aprender. Eu digo que nós é que temos muito o que aprender com as crianças. Eis algumas coisas que as crianças podem nos ensinar:
Nada é impossível. Foi com esse pensamento que os maiores gênios trouxeram progresso para a humanidade, que pessoas saíram de situações de pobreza e se tornaram famosos comediantes que nos alegraram e muitos nos alegram até hoje. O mundo não é feito por pessoas inteligentes, sortudas ou ricas, e sim por gente que nunca desistiu, pois nunca deixaram de acreditar que seu sonho era possível.
Felicidade nas coisas mais simples. Nossa sociedade se foca tanto em necessidades fabricadas que às vezes no esquecemos daquilo que realmente nos faz feliz: Um olhar, um sorriso, um dia de sol, um dia de chuva, um abraço, um aperto de mão, um beijo, uma risada, passear com seu cão. Não precisa ser rico, culto, famoso ou popular para aproveitar as coisas simples da vida. E garanto que qualquer uma dessas coisas deixará seu dia muito melhor do que qualquer dinheiro do mundo.
Atividade física. Crianças são esportistas natos. Não importa se eles gostam mais de correr, brincar de “lutinha”, jogar bola ou subir em árvores; toda criança sua, se machuca, se suja, estraga seu tênis novo. E isso não é ruim, muito pelo contrário; isso é celebrar a vida na sua melhor forma.
Curiosidade. Crianças também são cientistas naturais. Elas duvidam, questionam, querem saber, perguntam, procuram e descobrem. Com as crianças, poderíamos aprender a não dar as coisas como certas e achar isso bom; melhor, achar isso natural. Sempre haverá uma nova descoberta, uma nova informação e seu mundo sempre se transformará em cada uma delas. Não achar que está sempre certo e admitir sua pequenez perante o universo, mas nunca deixar de descobrir, nunca deixar de aprender.
Sem preconceitos. Crianças são totalmente desprovidas de preconceitos de qualquer natureza. Se algum comentário preconceituoso sai da boca de qualquer criança, não a critique, pois este comentário não é dela, e sim dos pais. O ser humano, em seu estado mais puro, não possui preconceitos. Não se vê superior a outra pessoa, não critica as diferenças; ao contrário, as celebra. Taí algo que nós, adultos, poderíamos aprender muito com as crianças.
Sinceridade. As crianças são inerentemente sinceras, doa a quem doer. E porque deveria ser diferente? Quando não se tem interesses escusos ou segundas intenções, coisas típicas de adultos, não há nada errado em ser sincero, pois cria um ambiente propício para discussão e a troca de ideias.
Como podemos ver, existem muitas coisas que as crianças podem nos ensinar. Então acho que deveríamos rever nosso conceito sobre “quem deve aprender com quem”. E, mais importante, sobre o significado do adjetivo “infantil”.
Mas existe uma última coisa que as crianças nos ensinam sem saber. Que existem coisas boas no mundo, que as pessoas não são inerentemente más. Que ainda é possível imaginar um mundo onde se possa ser eternamente como uma criança.
Mais do que tudo isso, as crianças nos ensinam que existem motivos para continuarmos lutando, para não desistirmos e não deixarmos o mundo adulto obliterar completamente nosso lado criança. Ouçam as crianças. O que elas têm a dizer pode ser muito mais relevante para o futuro do que qualquer filósofo, político, pai, celebridade ou formador de opinião.
“Quem não gostaria de voltar a ser criança?” foi a pergunta que fiz no começo desse texto. Vou continuar lutando por um mundo onde todo mundo se pergunte: “E porque eu deixaria de ser criança?”