Estamos em uma era de mudanças. Preconceitos e certezas que até então eram indiscutíveis na nossa sociedade estão sendo revistos, e, claro isso gera uma série de reações. Se por um lado uma parcela conservadora acha que manter os preconceitos enraizados é uma forma de “proteger a família e a sociedade” – quando na verdade está apenas defendendo seu direito de odiar – de outro lado surgem, eventualmente, exageros.
O caso mais recente de polêmica na internet foi o outdoor de X-Men: Apocalypse, que mostra o vilão segurando a agora heroína, Mística, pelo pescoço.
Muita gente percebeu um teor machista e agressivo contra as mulheres no cartaz. Como bem dito por alguns, a imagem que se tem, claramente, é de um homem enforcando uma mulher com o texto “só os fortes sobrevivem” ornando a imagem. O contexto – a cena é tirada diretamente do filme, sendo que o vilão, claro, é derrotado no final – não vem muito ao caso nesse momento.
O filme em si é exatamente o contrário do que se pode afirmar pela imagem e pela polêmica. As mulheres do filme tem importância e são fortes, batendo de frente e de igual para igual com os homens. Por mais que Psylocke e Tempestade tenham poucas falas no filme, elas são metade dos Cavaleiros do Apocalypse. Quem consegue derrotar o vilão no final é Jean Grey. E a Mística, outrora uma vilã capanga de Magneto, aqui é a protagonista e termina o filme como a LÍDER dos X-Men. Sim, não existe UM líder na equipe, e sim, UMA líder. No filme inteiro, a Mística é apresentada como a grande heroína e ídolo dos mutantes.
Mas então o que incomodou tanto? Se a personagem retratada no outdoor é uma mulher, protagonista, líder da parada, rainha da porra toda, que chuta bundas, uma imagem apenas poderia, ou deveria, gerar todo esse burburinho?
Entre as reações que comentei acima, a pior é da turma do “chega de mimimi”. Muitos dos seres que reclamam do “mimimi” acerca da imagem de divulgação do filme são os que reclamam do “mimimi” em relação a muitas outras indignações. Não só de mulheres, mas negros, gays, nordestinos, estrangeiros. O cidadão que não entende as dores do próximo por um único motivo: não são as suas dores. Um branco jamais entenderá totalmente o que é ser olhado com desconfiança na rua como um negro é, pois não passa por isso. Pra ele isso não existe, e se existe, não é nada demais. Um hetero nunca entenderá totalmente o que é ter medo de apanhar ou ser morto por dar um abraço na pessoa amada, porque nunca passou por isso. Pra ele isso não existe, é exagero, vitimismo, mimimi. Um homem jamais entenderá o que é se sentir agredido diariamente, cobrado por seu sexo, como uma mulher é. E é nisso que mora o perigo.
No ENEM, a menção à Simone de Beauvior gerou polêmica. Sim, uma simples frase da filósofa e escritora fez com que inúmeros machinhos se posicionassem contra a prova. A câmara de vereadores de Campinas inclusive aprovou uma moção contra o Enem por conta disso. Foi chamada de demoníaca. Doentio. Patético. Triste. E assim continua acontecendo. Na mesma prova do Enem, o tema da redação foi a violência contra a mulher. E sim, isso também gerou polêmica. Acusavam o tema de ser “esquerdista”.
Mas se debater e combater a violência contra a mulher é política de esquerda, tem algo muito errado com a direita, não é verdade?
O problema está aí, bem mais embaixo. Não é questão de direita ou esquerda. A questão é que a burrice se espalhou de forma endêmica pelos debates do país. Homens que não sentem na pele a violência diária das mulheres e não conseguem sentir empatia por elas, acham que está tudo ótimo e esse papo de violência é coisa de discurso “feminazi”. E também mulheres que, por talvez nunca terem passado por isso, não conseguem criar empatia com suas iguais.
Mas a mudança está ocorrendo, e é isso que assusta os “machistinhas”. Há alguns anos, Hollywood não via com bons olhos filmes de ação protagonizados por mulheres. Com meia dúzia de fracassos nas tentativas, sempre se olhou mais para o fato de terem protagonistas femininas como causa do fracasso do que simplesmente a qualidade duvidosa do filme em si. Isso está mudando. Furiosa roubou o filme de Mad Max pra si. Rey é a nova Jedi de uma galáxia distante de Star Wars. A Mulher Maravilha ganha filme ano que vem, e a Capitã Marvel logo mais também. A Vespa vai dividir o título e o protagonismo da continuação do Homem Formiga. Uma das maiores franquias dos últimos tempos, Jogos Vorazes, tem em Katniss Everdeen a sua grande heroína. Heroína essa, inclusive, vivida pela garota do momento, Jennifer Lawrence. Que no caso, é a Mística, pivô de toda a polêmica.
X-Men: Apocalypse não é um filme machista. Muito pelo contrário. Mas a peça publicitária…
Bem, eu duvido, tendo a trama a abertura e importância feminina que teve, que a Fox tenha feito o outdoor com um pensamento machista. Me parece que eles simplesmente cataram uma imagem dramática do filme – o antagonista em vias de matar a protagonista – para criar expectativa. De todo o elenco – que conta com astros como Fassbender e McAvoy – JLaw foi a escolhida para a peça, muito provavelmente, porque seria a atriz que mais chama público. Inclusive a cena não é machista – Mística é quem ataca diretamente o vilão, e é importante pois é nesse ponto que ela inspira a união de todos os mutantes contra o Apocalypse.
Entretanto – e, quando a gente pensa, sempre tem um entretanto – a peça foi uma má escolha. Não porque ela é machista e ponto, longe disso. Mas estamos em uma época delicada. Com o caso terrível que viemos acompanhando nas últimas semanas, e que mesmo ele, real, cruel, gerou uma horda de defensores do lado errado, expondo de forma nua e crua o machismo violento que está impregnado na cabeça da sociedade. Um outdoor de um homem enforcando uma mulher, fora de contexto, ainda é um homem enforcando uma mulher. Faltou tato.
Talvez o dia em que a violência contra elas não for mais algo rotineiro e cotidiano, esse outdoor será apenas o vilão sendo uma ameaça pro herói. Enquanto esse tempo não chega, eu não preciso concordar, mas preciso respeitar quem se sentiu ofendida pela imagem. Mesmo que seja a imagem de uma mulher poderosa, independente, e líder.