Uaréva! Rafael Rodrigues Heróis, vilões e vítimas

Heróis, vilões e vítimas

(OBS.: Este é um texto reflexivo)

Toda história tem um conflito. Seja ele interno, externo, físico ou mental, qualquer narrativa terá algum tipo de luta, literal ou metafórica. Mas quando a história é grande e alcança níveis míticos, a abrangência deste conflito coloca em risco não apenas envolvidos, mas muitos outros, no que alguns poderiam chamar de “casualidades de guerra” ou “danos colaterais”. Em meio ao espetáculo do conflito, ninguém se preocupa com as consequências imediatas advindas do conflito – as vítimas.

Uma destas histórias foi contada recentemente, na cidade de Denver, Colorado. A diferença é que, nesta história, não é possível fechar o livro, a HQ ou desligar a TV e voltar para a vida real, pois esta é a vida real.

Na ficção, heróis enfrentam vilões e tudo com o qual nos preocupamos é o espetáculo: Quanto mais perigoso o vilão, maior o desafio que ele representa para o herói e, até o desfecho da história, muitas “casualidades” acontecem, embora ignoradas pela plateia. Afinal, que diferença faz uma pessoa a mais ou a menos na história, já que o destino da cidade, do mundo, do universo, está em jogo?

Na vida, a história é outra. Nenhum de nós vive isolado do mundo; todos interagimos com a sociedade, possuindo família, tendo amigos, colegas de trabalho…Todos nós influenciamos no mínimo uma pessoa, e provavelmente bem mais do que isso. Cada um de nós, no momento que vivemos, atingimos alguém em algum nível. Aqui, fora das páginas e das telas, ninguém é causalidade; todo mundo é protagonista. Todo mundo faz falta para alguém, todo mundo tem sua própria história.

No mundo real, ninguém é “vítima”. Todo mundo é pai, mãe, irmão, amigo, colega, filho. Todo mundo é alguém. Alguém que faz falta. Não podemos nos dar ao luxo, em nossa realidade, de fechar os olhos e seguir para a próxima história, onde a pessoa que fez um personagem está viva para se tornar outro. Na vida, não há troca de personagens.

Mesmo assim, insistimos em viver como se estivéssemos rodeados por uma história fictícia. Assistimos ao noticiário curiosos com a astúcia de um criminoso, querendo saber como ele pode ser tão esperto, vibramos quando alguém salva um cachorro de um incêndio e queremos saber cada passo da investigação de um atentado terrorista. Mas ninguém quer saber das “casualidades de guerra”, ninguém quer saber das pessoas.

A imprensa entra na onda, aproveitando a tendência do ser humano para o espetáculo para vender jornais, gerar audiência e ganhar dinheiro e, assim, dá às pessoas o que elas querem: uma boa trama, com conflitos, suspense, reviravoltas, heróis e vilões. As vítimas são um “mal necessário” para tornar a história mais interessante.

No massacre ocorrido em Denver, um homem matou dezenas de pessoas. Pessoas que eram pais, mães, filhos, irmãos, amigos…Pessoas que deveriam ser lembradas como o retrato de uma sociedade doente. Mas, ao invés disso, nos importamos com o vilão. Ficamos alimentando o monstro e transformando-o em uma criatura mítica. E não há nada mais poderoso do que um mito. O mito sobrevive à morte física e se torna imortal. É isso a que nosso mundo real se reduziu? A permitir que um maníaco seja eterno, enterrando por completo todas as suas vítimas, que se tornarão apenas uma nota de rodapé na história, se muito?

A tragédia em Denver não é a primeira, e provavelmente não será a única; de fato, este tipo de incidente é até bem corriqueiro em nosso mundo atual. Não só corriqueiros, mas comuns, mundanos. Tão mundanos que cada tragédia dessas é apenas mais uma história, que nos entretém durante um tempo, até que a história “acaba”, e outra toma o seu lugar. E fica registrado em nossa memória o grande desfecho, o épico conflito, os heróis, os vilões… Mas nunca as casualidades.

Este texto faz parte da série de discussões que serão geradas por essa tragédia. Isso é comum, assim como o burburinho gerado pela estreia de um grande filme ou o lançamento de um grande livro de sucesso. Mas estamos no mundo real. E a maior tragédia é saber que uma tragédia não é uma história de ficção. É a vida. Mas ninguém se dá conta disso.

Infelizmente, estamos tão afundados na fantasia que esquecemos que a realidade, por mais que a gente ignore, sempre nos encontra. E não há garantias de final feliz no mundo real. Não há um roteirista ou escritor que possa reescrever nossas falas para que voltemos atrás quando nos arrependemos de algo que dissemos, nem para refazer nossas cenas para que terminemos felizes para sempre. Cada passo, cada decisão, cada voz, depende de nós. De cada um de nós. Mas nenhum de nós consegue qualquer coisa sozinho. É preciso outro. E outro. E mais outro. É por isso que somos parte de uma sociedade.

Mas o que acontece com uma sociedade em que todos dependem uns dos outros, mas todo mundo vive como se não dependesse de ninguém? O que acontece quando nossa carência se transforma em egoísmo, que eventualmente leva à indiferença?

Não sei se esta pergunta tem resposta. Não sei se tem apenas uma resposta. Mas sei que, num mundo onde heróis e vilões residem na ficção, à realidade só cabe abrigar as vítimas. E lembrar que, aqui, elas são – ou deveriam ser – muito mais que isso. Sou eu e você.

As vítimas são todos nós, que somos protagonistas de uma grande história que não terá remakes. A diferença é que, nesta narrativa chamada história da humanidade, somos atores, diretores e roteiristas, podendo assim, definir os rumos da trama.

Que final você vai querer para esta história?

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