“Será que eu parei de ser vampira?
Bom,só há um jeito de saber.
Lá fora tem um monte de filhos de uma puta criminosos cheios de sangue nas veias…Esperando por mim”
Fazer terror nos quadrinhos é bem mais difícil do que pode se pensar num primeiro momento. Imagine que, comparado com outras mídias como cinema/TV ou literatura, os quadrinhos possuem diversas limitações e armadilhas que contribuem para que uma história de terror facilmente deixe de funcionar. Cinema/TV tem as vantagens da “realidade” (usar pessoas reais), o movimento, o som (que, segundo pesquisas, é responsável por 50% ou mais da emoção transmitida em um filme), enquanto que a literatura tem a vantagem da abstração e da subjetividade a partir do uso das palavras. Quadrinhos caminham num meio termo a isso, onde a imagem pode matar a subjetividade, ao mesmo tempo que dificilmente supera a “realidade” da imagem real, não possui som e nem movimento. Além do fato de que qualquer leitor pode transgredir as regras e olhar o final da história, destruindo uma narrativa que se focasse, por exemplo, em uma surpresa final.
São muitos os obstáculos para se fazer uma história de terror que funcione em HQ, e poucos o que conseguiram concretizar isso ao longo das décadas. Felizmente, Vigor Mortis Comics é um destes exemplos. Mas também não é para menos, pois a HQ é mais do que uma (ou várias, no caso) história em quadrinhos: é o resultado de uma mistura de influências e de gêneros, que cruza mídias e mostra que o Brasil inova em diversos aspectos culturais, mas infelizmente pouco o público em geral sabe disso.
Para você entender o que eu quis dizer, é importante contextualizar as coisas: Vigor Mortis é um álbum que compila diversas histórias baseadas em personagens e situações de universos criados no teatro, pela companhia de mesmo nome, criada por Paulo Biscaia Filho, mestre em artes pela Royal Holloway University of London. Mas não pense que o título pomposo colocou Biscaia a fazer obras abstratas e intelectualóides que ninguém entende. Pelo contrário, suas influências são as mais variadas e vão desde o Théâtre Du Grand Guignol ao cinema do Quentin Tarantino, passando por diversos gêneros literários e, é claro, quadrinhos. Inclusive, os quadrinhos são uma das maiores influências para as peças produzidas pela companhia teatral.
Mas, como nunca acompanhei as peças, vamos falar da HQ propriamente dita. Em Vigor Mortis Comics, junta-se à Paulo Biscaia filho os quadrinistas José Aguiar (de Ato 5, Quadrinhofilia, Folheteen e Nada com Coisa Alguma – que tem o expressionismo alemão como uma de suas influências, o que é mais do que adequado para este tipo de projeto) e o desenhista DW, que já publicou na antologia Café Espacial e tem um projeto para sair em parceria com Rafael Coutinho, dois ótimos artistas que entendem muito bem do riscado.
Existem 3 grandes méritos em Vigor Mortis Comics: O primeiro deles é explorar de forma intensa a inter-relação entre entre gêneros e as influências principais das histórias originais. Algumas são descaradas (como Tarantino, Dario Argento, filmes trash, histórias noir, os quadrinhos de terror/erótico estilo Krypta e os quadrinhos da Marvel). A segunda é que as histórias que aparecem no álbum se passam dentro do “universo” das peças, mas são histórias inéditas e que podem ser lidas tranquilamente sem que tenha assistido a qualquer uma das obras originais. A terceira é inclusive um dos motivos pelos quais acredito que Vigor Mortis Comics consegue funcionar como um álbum de terror, que é justamente se focar menos no terror como gênero e mais em explorar quais situações que, visualmente, levam o leitor ao limite, incutindo emoções das mais diversas, desde medo e repulsa até raiva e risos. Há muito que o terror “de verdade” deixou de ter como objetivo apenas “dar medinho” (se é que alguma vez o gênero teve essa intenção) e se mostra como uma forma de arte capaz de despertar emoções primitivas e constrangedoras, usando a perturbação como instrumento para que se adentre na história (é claro que Hollywood parece ter se esquecido disso, mas isso é assunto para outro post). Visto por este aspecto, Vigor Mortis Comics é um excelente álbum de terror, que não deve nada em comparação com outras obras em quadrinhos internacionais do gênero.
Curiosidades:
– Le Théâtre du Grand-Guignol era um teatro na região do Pigalle em Paris (situado na rue Chaptal, número 20 bis), o qual, desde sua inauguração em 1897 até o seu fechamento em 1962, especializava-se em shows de horror naturalista. O termo é geralmente utilizado em termos gerais para descrever um tipo bem descrito e amoral de entretenimento de horror. As peças prezavam por um estilo teatral que escandalizou Paris no fim do século XIX/Começo do Século XX por sua postura de explorar as emoções do público através do exagero e situações obscenas;
– Os personagens de Vigor Mortis Comics são retirados de diversas peças produzidas pela companhia Vigor Mortis, como Morgue Story – Sangue, Baiacu e Quadrinhos, Graphic, Garotas Vampiras Bebem Vinho e Snuff Games;
– Morgue Story, uma das peças que serve como base para as histórias de Vigor Mortis Comics já teve adaptação cinematográfica em um filme independente de mesmo nome.