Existem HQs e HQs. Algumas não fazem diferença nenhuma no mercado ou sequer na vida de alguém. Outras, por outro lado conseguem fazer essas duas coisas de forma bastante eficiente. É o caso de Maus – O diário de um sobrevivente, uma Hq biográfico-metalingúistica que fala dos horrores da guerra, do conflito de gerações, da difícil relação entre um pai e um filho, mostra os humanos como animais (em todos os sentidos) e traz um olhar mais profundo sobre as relações humanas e suas atitudes frente àquilo que não podem controlar.
Quando Marcelo Soares fez o post sobre Retalhos e os quadrinhos biográficos, lembrei que estava devendo essa resenha já fazia um tempo. Não o fiz, não por preguiça nem falta de tempo (embora estes fatores possam ter contribuído), mas sim porque fazer resenha para uma HQ como essa é uma grande responsabilidade.
Maus é uma HQ difícil de descrever. Assim como todas as obras que se tornam cânones dentro de um segmento específico, Maus funciona em tantos níveis quanto for possível para o leitor analisar, o que faz com que a obra tenha peso, mas também torna muito difícil uma análise imparcial.
Isso porque Maus trabalha com diversos temas, alguns óbvios, outros nem tanto, que tocam profundamente o leitor em algum momento (se não em todos). E, quando uma história chega nesse ponto, nós fomos capturados. E o envolvimento emocional dificulta a capacidade de julgamento. Mesmo assim, vou tentar ser o mais imparcial possível nesta resenha.
Maus é uma hq que, para ser bem analisada, precisa ser desconstruída para ser entendida. Então, vamos ao contexto histórico.
Art Spiegelman é um dos grandes quadrinistas do underground americano. Judeu, descendente de poloneses, teve pais que estiveram no centro da Segunda Guerra Mundial, mas nunca teve sequer um vislumbre do que foi este momento na vida deles, uma vez que nasceu muito tempo depois destes acontecimentos. Spiegelman sempre teve uma relação difícil com seu pai desde criança, o que piorou quando adulto, ainda mais quando sua mãe morreu. Mesmo tendo seu pai casado com outra mulher, nunca houve uma melhora e eles nunca tiveram um relacionamento que Art pudesse chamar de um relacionamento pai/filho.
Já que não chegou perto de conhecer os horrores da Guerra, Art Spiegelman decidiu escrever sobre o que seu pai havia passado durante o período, desde o início da Segunda Guerra até o fim, passando pelo turbulento período em Auschwitz. No entanto, conforme foi retratando o que seu pai contava, Spiegelman pôde também perceber que a difícil relação entre eles não poderia ficar de fora da história. Então decidiu que hq não seria sobre a história de seu pai, e sim sobre a história dele ouvindo a história do pai durante a Segunda Guerra, num contexto metalingüístico explorado de forma sutil na maior parte do tempo, mas ainda assim impossível de ser ignorada. Destaque para o momento em que Spiegelman se vê acuado pela grande receptividade do primeiro volume de sua HQ e o que isso provoca nele.
Outro ponto que merece destaque na criação da Graphic Novel é que, diferente do que poderia se imaginar em uma biografia, os personagens que vemos ali, apesar de homens, eram todos animais. Não (só) no sentido alegórico, mas também literal. Na HQ, cada “raça” era um animal diferente. Os poloneses foram retratados como porcos, os americanos como cães, uma cigana é desenhada como uma traça, os nazistas são gatos e os judeus, ratos. Essa antropomorfização na HQ toma um sentido muito mais profundo quando começamos a nos envolver na história e vamos percebendo as relações entre eles. Bem diferente da antropomorfização realizada pelos desenhos para atingir um público infantil, na obra de Spiegelman ela é usada para mostrar aquilo que nem sempre nós conseguimos perceber: Aquilo que somos, aquilo que achamos que somos ou aquilo que sentimos que somos em determinado momento. Aliás, os animais usados foram escolhidos não pelo que são realmente, mas pela idéia que nós, humanos, temos deles.
Pode-se pensar que fica mais fácil, ou mais tragável ler uma história sobre o holocausto com animais no lugar de pessoas, mas isso só deixa a narrativa ainda mais contundente e triste. O que vemos é uma história comovente, dura, cruel e humana, que nos faz refletir sobre palavras como sociedade, liberdade, crueldade. Humanidade. As sequências passadas na Segunda Guerra, apesar de muitas vezes omitir visualmente incidentes bastante violentos narrados pelo pai de Spiegelman, são fortes, tanto pelo contexto visual quanto pelo emocional. Em meio à isso, vamos aos poucos entendendo mais o complicado relacionamento entre Art Spiegelman e seu pai e vamos começando a conhecer ambos um pouco mais. A história também é bem detalhada, principalmente em sequências que mostram locais específicos, o que ajuda muito a entender como as coisas funcionavam naquela época.
O roteiro é sem rodeios; não existe romantização nenhuma dos eventos por parte do autor e nada que “amacie” a narrativa: a história começa do jeito que aconteceu, e termina do jeito que aconteceu. Mesmo com as típicas liberdades artísticas, a narrativa é bem crua, o que também vale para a arte. Os desenhos são bastante duros, frios, para não dizer insensíveis. Talvez isso tenha sido para contextualizar a forma como o autor imaginou a Guerra, como um evento frio e insensível. Mas eu acredito que o verdadeiro significado do estilo de arte tenha sido mesmo a influência do conturbado relacionamento entre pai e filho que, aos olhos de Spiegelman, sempre pareceu uma relação com as mesmas características da arte da hq.
Mas as coisas não são tão simples assim, nem as pessoas e é isso que Maus também nos mostra. Em meio a personagens bastante humanos e verossímeis, conforme lemos a hq ela vai se tornando cada vez mais algo muito maior do que uma simples história, e se torna quase uma parte da sua vida.
Talvez muitos de vocês não vejam Maus do jeito que eu vi. Eu fiquei pessoalmente envolvido com a história, pois minha relação com meu pai é muito parecida com a descrita na hq, então talvez eu tenha visto muito mais na história do que outros sequer verão. Independente disso, é uma HQ que vale a pena ser lida, afinal de contas, não é toda história em quadrinhos que ganha o Prêmio Pulitzer. Mas já aviso: A HQ é extensa, então talvez (bem provavelmente) os mais acostumados ao quadrinho massa veio com explosões e personagens anatomicamente (ou exageradamente) perfeitos possam se decepcionar, porque não há nada disso ali. Há apenas experiência de vida.
Maus pode ser encontrado nas livrarias numa antologia completa por R$ 45,50. Para os fãs de boas hqs, vale cada centavo.
Em tempo: “Maus”, em alemão significa “Ratos”.
Nota: 10
Rafael Rodrigues não passou pelos campos de concentração nazista, mas sabe como às vezes uma relação entre pai e filho pode ser difícil.