“André, o mundo precisa de mais histórias felizes.”
O que acontece quando morremos? A vida acaba? Ela continua, e somos punidos por nossos pecados? Encontramos Deus? Reiniciamos um ciclo de vida eterno? Simplesmente apodrecemos? Estas são algumas das perguntas que levam as pessoas a crer na vida após a morte. E, sendo o espiritismo o assunto do momento, não é de se surpreender que Nosso Lar tenha chegado às telas com grande expectativa.
Fazer um review de uma produção como essa é algo bastante arriscado. Digo isso porque é difícil escrever algo sem se deixar levar pelas suas próprias convicções. Diferente do cristianismo que, mesmo quem não acredita teve durante sua vida (ou pelo menos sua infância) praticamente enfiados goela abaixo filmes cristãos (no caso dos ocidentais, obviamente), o espiritismo não é uma religião dominante no país. No entanto, segundo estimativas, existem atualmente cerca de 3 milhões de pessoas adeptas do espiritismo, sem contar as pessoas que, apesar de não praticantes, podem ser consideradas simpatizantes de suas doutrinas. Isso faz do Brasil a nação com maior número de espíritas no mundo inteiro e, sabendo disso, fica fácil entender o interesse dos estúdios em produções voltadas a esse público, principalmente depois do sucesso do filme sobre a vida de Chico Xavier.
Conhecendo um pouco sobre o assunto (essa é a vantagem de se estar em uma família onde cada um acredita numa coisa completamente diferente), fica fácil entender o fascínio das pessoas por esta visão de (pós) mundo. Na realidade espírita, não há imposições sem sentido com relação ao que gostar, como se vestir e o que ouvir; não existe céu ou inferno, mas sim estados de consciência para onde você vai, dependendo de suas atitudes. Além disso, o espiritismo é moderno, não só em termos cronológicos – é bastante recente se comparada às religiões “principais” – mas também no que se refere à sua flexibilidade e relação com o desenvolvimento tecnológico humano. Sendo assim, o nosso mundo, incluindo as inovações tecnológicas, nada mais são do que um reflexo do “verdadeiro” mundo, que é o mundo espiritual, um mundo muito mais avançado que o nosso (qualquer semelhança com mundos alienígenas semelhantes da ficção não é mera coincidência).
E foi justamente essa flexibilidade que me levou a assistir Nosso Lar, produção dirigida e roteirizada por Wagner de Assis baseada em um livro escrito por Chico Xavier e (supostamente) ditado pelo espírito de André Luiz, que conta sua vida no mundo espiritual e na “colônia” Nosso Lar do título. E aí é que entra a dificuldade de se manter isento na história. Primeiro porque, para os espíritas, Nosso Lar é uma descrição completa – e real – de como funciona o mundo espiritual e, neste caso, é algo que fundamenta toda a doutrina. Em outras palavras, para os espíritas, tudo aquilo que é visto na história deve ser tomado por verdade. Para quem não é espírita, no entanto, resta a boa vontade de esperar uma produção de qualidade e envolvente ou – no caso de crentes de outras religiões – simplesmente ignorar suas próprias crenças em prol de apreciar a história.
Eu sou ateu. Não costumo declarar isso aos quatro ventos porque sou minoria em um mundo que acha que vou para o inferno apenas por questionar a existência de Deus. Mas acho que, no caso dessa resenha, é necessário estabelecer meu posicionamento a respeito da história e assim justificar minhas opiniões. Como você pode imaginar, não fui assistir Nosso Lar porque para mim ele representa a verdade absoluta sobre a natureza da realidade, mas também não fui lá para ficar contestando cada cena. Fui ao cinema, assim como sempre, para assistir o que eu esperava ser um bom filme nacional de ficção científica. Infelizmente, não posso dizer que foi uma experiência recompensadora, mas acho sim que ela tem seus méritos.
Começando pelos aspectos positivos, é sempre bom ver uma produção que fuja da tradicional trinca comédia romântica – violência urbana – seca no nordeste. Sem contar que não é todo o dia que vemos produções que contem com cenários fantásticos elaborados e com efeitos especiais de empresas como a Intelligent Creatures, responsável por filmes americanos como Sr. e Sra. Smith, Babel e Watchmen, fazendo dela a produção brasileira mais cara já realizada – e, diferente de outros filmes, como Lula – O Filho do Brasil, em Nosso Lar nós conseguimos ver para onde foi todo o dinheiro. Além disso, a história conta com conceitos muito interessantes de serem explorados na ficção, uma mensagem positiva (embora um tanto piegas) e tem um visual bastante voltado para o realismo fantástico, o que torna a produção atrativa nacional e internacionalmente, mesmo para quem não é espírita.
Mas talvez este seja um dos problemas de Nosso Lar. É um filme espírita, feito para espíritas. Nem mais, nem menos (afinal, é apoiada pela FEB – Federação Espírita Brasileira). A extravagância orçamentária (20 milhões) que garantiu os efeitos visuais não muda o fato de que a produção foi desenvolvida para buscar manter a credibilidade da doutrina e, por conseguinte, validá-la. Não que isso seja realmente um problema, afinal, os cristãos fazem isso há tempos (a Globo que o diga, sempre reprisando ad infinitum aqueles filmes bíblicos sobre a Páscoa, a crucificação de Jesus entre outros) e não vejo porque deixar de assistir a uma obra bem executada, mesmo não tomando aquilo como verdade. Afinal de contas, adoro filmes de zumbis e nem por isso acredito que eles caminham por aí comendo cérebros na realidade.
Mas o contexto religioso, apesar de contar não é, nem de longe, o principal problema. Embora seja bem dirigido, conte com uma fotografia competente e efeitos visuais e cenários muito bem elaborados e bonitos, a produção carece de outros elementos que tornam difícil fazer o filme funcionar como experiência cinematográfica. Um dos pontos mais negativos é, sem dúvida, a atuação que é, usando um termo científico, ruim. Alguém precisa dizer para os atores brasileiros que atuar no nível de novela da Globo não é atuar bem. Muitos dos atores ali, especialmente os protagonistas e até alguns veteranos – que eu admiro como grandes atores, embora estejam devendo muito no filme – precisam aprender a sair de suas zonas de conforto, assistir mais filmes nacionais bons e se esforçar um pouco mais para atuar de verdade e fugir da atuação no piloto automático.
Outro grande problema, a meu ver, foram os diálogos. Além de serem extremamente piegas, são didáticos demais e servem apenas para levar a história de um ponto à outro e explicar como funciona a doutrina espírita. Não há nenhuma sensação de veracidade naquilo que sai da boca dos personagens (se bem que isso não sei se é devido aos diálogos ou à atuação medonha de alguns). Os personagens são muito rasos, não há um real desenvolvimento de suas personalidades. Não conhecemos melhor os filhos e mulher de André Luiz, que ficaram na Terra quando este morreu, o que não ajuda a nos identificarmos com eles. Eu até entendo a uniformidade nas personalidades dos personagens que vivem no Nosso Lar, mas não iria doer diferenciar um do outro com algum traço característico. Todos pareciam atores diferentes “interpretando” um mesmo personagem. Até há algumas tentativas de se aprofundar em alguns deles, mas chega a ser constrangedor ver as mudanças súbitas de atitudes apenas para tentar humanizar estes personagens de última hora. Sem contar que não existe nenhuma explicação social adequada para os defeitos do protagonista. Para todos os efeitos, o fato dele ser ateu (o que nem é explorado de forma competente no filme, resumindo-se à uma piadinha tola) é suficiente para ele ser egoísta, arrogante e “suicida inconsciente” (say what???).
Vendo o filme como ficção científica, ele tem seus problemas narrativos e de produção. Mas vendo sob o ponto de vista espiritualista também. A história me trouxe uma série de questões (que, se alguém que está lendo for espírita e tiver a boa vontade de explicar, o faça nos comentários, pois realmente quero saber), um tanto bobas é verdade mas igualmente válidas: Porque eles ainda comem e bebem no mundo espiritual? Porque ainda dormem? Porque só toca música clássica (não que eu esteja reclamando, as músicas do filme são ótimas)? Porque não existem cães ou gatos no Nosso Lar (pelo menos eu não vi, se caso apareceu e eu passei batido, podem dizer que eu sou burro)? Apenas as aves e borboletas podem ascender aos céus, enquanto outros animais não, ou mamíferos tem seus próprios “lares” separados no mundo espiritual? E os dinossauros, onde entram nessa história (tá, confesso que essa foi só para implicar)? Se eles lêem a mente um do outro, porque diabos ainda precisam falar?
Eu teria, é claro, muitas outras questões, mas elas não teriam muito a ver com o filme em si, e sim com a doutrina. Imagino que o espiritismo deva ter a resposta para tais questões mas, se tem, isso não ficou claro na produção (ou pelo menos não ficou claro para mim). No fim das contas, Nosso Lar pode ser visto de 3 formas diferentes: Para os espíritas, será uma descrição fiel do que eles consideram como verdade e, portanto provavelmente será uma experiência satisfatória; para ateus e agnósticos, que verão o filme apenas como uma história de ficção, vão ter problemas em “comprar” a história (pelos problemas técnicos que citei); e para os teístas adeptos de alguma religião será uma abominação que viola tudo aquilo que eles acreditam, e portanto, se tiverem a boa vontade de ver o filme (o que eu acho difícil), eles provavelmente questionarão tudo e tentarão boicotar o filme. Inclusive, eu fico curioso para saber o que um judeu pensaria de ver suas crenças totalmente obliteradas ao presenciar as vítimas do holocausto chegando no Nosso Lar e ouvindo um espírito engraçadinho dizer a eles “Não é o céu que vocês estavam esperando, mas vamos cuidar de vocês mesmo assim”.
Nosso Lar não é o melhor filme brasileiro já feito, longe disso. Mas denota um maior interesse no investimento de produções mais criativas e que fogem do convencional para o público comum. Se é um filme que vale a pena ver, não sei dizer ao certo. Minha mãe, por exemplo, se emocionou com o filme (levei ela para assistir também). Tudo bem que ela não tem muito critério para filmes, mas acho que ela representa bem o público que se interessará por essa produção.
Eu por outro lado, achei a mensagem bastante positiva… Embora não entenda porque esperar no pós-vida algo que pode ser conquistado em vida, com esforço, dedicação e altruísmo, enquanto a humanidade ainda existe (em matéria, pelo menos).
Porque o “nosso lar” não pode ser aqui mesmo?
Nota 5,3333333333333333333333333333333333333333333333333333…
(achei adequado para este review uma dízima periódica rumo ao infinito)
P.S.: Alguém me explica porque citam o filme como “Baseado na Obra de Chico Xavier”? Afinal, o livro não foi psicografado (ditado por um espírito)? Neste caso, isso não faz do Chico Xavier apenas uma ferramenta, sendo o verdadeiro autor o (suposto) espírito de André Luiz? Não seria a mesma coisa de dizer que quem teve a idéia do nome de uma criança foi o escrivão, ao invés da mãe/pai que ditou o nome para ele?
Rafael prefere apreciar todo o filme a pular direto para o final. Talvez por isso prefira aproveitar a vida a pensar no seu desfecho.