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Uareview: Bird Box (com Spoilers)


Impossível não ter sido atingido em algum momento pelo hype de Bird Box – ou Caixa de Pássaros, se preferir o título tupiniquim da obra. Seja através dos inúmeros comentários dos que o assistiram, das diversas teorias e tentativas de explicar o filme nos youtubes da vida, ou mesmo por memes, quase todo mundo viu Sandra Bullock com uma venda nos olhos.
Grande hit da Netflix nessa passagem de 2018 para 2019, o filme é adaptação de um livro de 2014, com uma trama que aposta no terror apocalíptico que lembra um dos longas de maior sucesso do ano passado, Um Lugar Silencioso.


Se nesse último citado o terror vem do som, e isso proporcionou, no mínimo, uma experiência peculiar nas salas de cinema – que se mantiveram em um silêncio quase absoluto de tão compenetrados pela quietude obrigatória imposta pela trama protagonizada por John Krazinski – em Caixa de Pássaros outro sentido é a ameaça vigente: dessa vez os sobreviventes não podem ver para poderem se manter a salvo.

Bird Box começa nos jogando em uma situação inusitada: uma mulher adulta que instrui duas crianças para a missão que enfrentarão em seguida: cruzar um rio cheio de corredeiras, com os olhos vendados. Logo em seguida somos jogados de volta cinco anos no passado, durante o surto de suicídios que está ocorrendo no mundo e que vai chegar até a protagonista, Malorie (Bullock), uma mulher com dificuldades de se relacionar e grávida. A apresentação do problema, e o início do pesadelo de Malorie acontecem, aliás, de forma rápida e eficiente. O que é ótimo, exceto pelo pouco tempo de tela de Sara Paulson.

Esse entrecorte que nos joga entre futuro e passado torna o filme bastante dinâmico, impedindo que ele ganhe barrigas ou cenas entediantes que durem demais. Acompanhamos a vida de Malorie durante o “apocalipse”, dividindo uma casa com vários estranhos que tentam evitar contato visual com o exterior da residência, e o futuro, em que a personagem de Sandra Bullock está em uma situação de perigo iminente, em uma canoa, dentro de um rio, com duas crianças pequenas.

O legal desse vai e vem no tempo é exatamente ir descobrindo as regras desse mundo no passado, e a aplicação delas no futuro. Se algumas coisas a princípio não parecem fazer sentido, ou nos deixam confusos, nas cenas do futuro, é divertido compreendê-las quando o filme nos leva de volta ao passado da personagem. O ataque do homem ao barco, o fato de haverem duas crianças, e não apenas uma, o uso dos pássaros, etc. Uma pena que a maior parte dessas regrinhas acabem sendo muito pouco utilizadas, sendo a própria caixa de pássaros um caso desses.

A alternância e o jogo de informações que temos é o lado bom dessa edição. O ruim é que, ao vermos o status quo apresentado nas cenas do futuro, algumas coisas tornam-se bastante previsíveis na trama do passado. O destino do grupo de sobreviventes da casa, por exemplo.

Aliás, os coadjuvantes, com pouca exceção de John Malkovitch e Trevante Rhodes, servem apenas como camisas vermelhas mesmo. Cada um serve a um objetivo específico, sem aprofundamento em suas personalidades, a ponto de não nos importarmos muito com o que vai acontecer com eles. Eles são muito mais artifícios de roteiro do que realmente seres humanos relacionáveis.

A agilidade do roteiro e a aposta na paranoia e suspense acabam por tornar desnecessária a existência de grandes cenas com efeitos especiais. Com exceção da inicial, em que Mal e sua irmã Jessica estão no carro, e dão de cara com os efeitos do surto, não há nenhuma sequência mirabolante, coisa comum em terrores como A Freira e toda a franquia Invocação do Mal. E isso é um ponto positivo. O temor do que pode ocorrer está nas cenas de morte, que são extremamente bem feitas e angustiantes, o que, inclusive é um mérito enorme dos atores. O olhar de desespero ao encarar a “entidade” feito pelos atores é assustador. Com destaque aqui para os já citados Sara Paulson e Trevante Rhodes.

Falando na entidade, é bastante eficaz a forma como ela jamais é mostrada. Isso nos coloca no lugar dos personagens, afinal, se a víssemos, também morreríamos. Eu comentei antes sobre como Um Lugar Silencioso conseguiu criar uma experiência bastante diferente, por fazer o público evitar ao máximo fazer barulhos, nos colocando na mesma situação dos personagens na tela. Infelizmente Bird Box não consegue atingir o mesmo nível de envolvimento. Afinal, seria impossível fazer com que os espectadores também não pudessem enxergar, como os personagens. Mas ao não mostrar a criatura, nos aproximou um pouco dessa experiência. Não o podemos ver, tal qual Malorie e quem mais quiser sobreviver.

Aliás, existe outro ótimo motivo para que ele não tenha sido mostrado.

Muitas pessoas reclamaram de não haver uma explicação para a entidade. O que é? Aliens? Fantasmas? O Capiroto?

Eu pessoalmente não senti falta de maiores detalhes, e espero realmente que não haja uma sequência feita para explicar didaticamente o que é aquilo. É nítido, pra mim, que o autor do livro, Josh Malerman, se baseou nos conceitos de H.P. Lovecraft. A loucura e o horror causados por uma entidade que ninguém pode descrever claramente é uma óbvia referência a Ctchullu e demais seres Lovecraftinianos, que simbolizam a insignificância humana perante a grandiosidade do universo. Isso explicaria até o motivo que leva pessoas “sãs” ao suicídio, e as pessoas loucas ao deslumbramento. Se pudéssemos ver de uma vez só todo o esplendor da existência, entre suas maravilhas e desgraças, conseguiríamos lidar com o quão sem sentido é nossa pequena e desprezível vida? Literalmente percebermos que somos menos que um grão de areia no deserto, de forma clara e eliminando qualquer dúvida dessa pequenez, como iríamos lidar com o desespero de não ter a menor importância? Talvez apenas sendo louco, e tendo já aberto mão da necessidade de relevância, nosso cérebro fosse capaz de lidar com essa verdade, e mais, nos tornássemos compelidos a forçar todos os demais a enxergarem a realidade crua.

Além disso, tudo, quando Gary espalha na mesa os desenhos que fez da entidade, entre elas há algumas que lembram bastante à imagem clássica da representação de Ctchullu na cultura.

Desenhos feitos pelo Gary

 

A representação mais comum do Ctchullu

O terceiro ato, assim como o filme inteiro, traz bons e maus momentos. O encerramento do plot da casa começa com um twist interessante, e talvez inesperado. Não dá pra mensurar se o espectador conseguiu ou não prever que Greg era uma ameaça, e confesso que eu, apesar de desconfiar do personagem, pensei que a reviravolta se daria é com o Douglas (Malkovitch).

Já no barquinho, o dilema que nos foi apresentado – Mal iria decidir qual das duas crianças teria que olhar para que ela pudesse remar o barco da forma correta ao chegar às corredeiras – acaba de forma bem anticlimática. Depois de a vermos batendo nessa tecla por metade do filme, a solução é ela decidir que ninguém vai olhar e que eles vão às cegas mesmo. Não que eu ache que ela deveria ter colocado a garota – sua escolha óbvia, mas relutante – para guia-los. Porém o simples “ah foda-se, bora na coragem” me pareceu simplista demais, e sem grandes consequências. O barco vira, temos um tempinho com a Malorie resgatando os dois, e segue a trama. Cheirou a roteiro fraco e pouca inspiração para a cena clímax.

O encerramento, com um final feliz, não me decepcionou. A própria diretora, Susanne Bier, afirmou que queria algo assim, para evitar um final negativista. Concordo com ela. Depois de tanta morte e desgraça, ver Malorie finalmente abrindo seu coração para seus filhos e os vendo a salvo em um local seguro, é reconfortante.

Caixa de Pássaros não é o último baluarte do cinema, como muita gente vem afirmando, nem renova o gênero de suspense pós-apocalíptico ou cria uma experiência sensorial inesquecível. Mas é sim um divertido filme, que cria tensão e angustia nos momentos corretos e ainda referencia Lovecraft.

Valeu a pena a olhada.

Designer gráfico por vocação, publicitário por formação, filósofo por piração.

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