A Morte

“Agora, eu me tornei Morte, o destruidor de mundos”

Bhagavad Gita; J. Robert Oppenheimer*

Existem assuntos que muitas pessoas evitam discutir, mas que infelizmente (para eles), inevitavelmente é trazido à tona, quer a gente queira, quer não: a morte. Existem muitos conceitos, idéias e crenças a respeito da morte, que também é tema indispensável em praticamente qualquer história. Nas histórias de terror, nem se fala. Sem a morte, provavelmente sequer existiriam história de terror (afinal, o que há pára se temer se ninguém morre?).

Na vida, não há um consenso popular sobre a morte. Para a ciência, é bem simples. Não se trata de um mero jogo de palavras: morte é morte. É o cessamento definitivo das atividades biológicas, em particular do cérebro. Para a ciência, a morte é o fim da linha, o desfecho, o ponto final da vida. Talvez por isso muitas pessoas tenham dificuldades em aceitar a ideia da morte biológica como um fim definitivo e busquem formas de compensar o medo do fim com ideias de que a consciência pode sobreviver após a morte.

A sobrevivência da consciência após a morte, muitas vezes chamada de “vida após a morte” (eu prefiro usar “pós-vida” já que “vida” e “morte” são termos bem definidos, e dizer “vida após a morte” acaba sendo uma expressão sem sentido do ponto de vista lógico) é, é claro, uma idéia muito antiga. Provavelmente tão antiga quanto a evolução da consciência. Aliás, é isto o que nos torna seres diferenciados de (quase) todos os animais: nós sabemos que vamos morrer. E, para garantir que não nos entreguemos ao suicídio (já que não importa o quanto lutemos, nosso fim será sempre o mesmo) nem comprometamos nossa sanidade, nós fazemos o que é mais humano: criamos histórias. Assim, histórias sobre a morte e sobre a continuidade da consciência são comuns – e bem antigas, como já citado. Existem diversas idéias de pós-vida: uma dicotômica, que nos envia para um dos extremos – um mundo de recompensa ou de danação -, cujos critérios depende da visão religiosa de cada um; uma com continuidade, onde o pó-vida é uma sequência com aspectos semelhantes aos da vida; uma onde a vida como conhecemos acaba e nossa consciência se une a uma grande consciência coletiva; um onde não existe um pós-morte propriamente dito e sim uma espécie de “animação suspensa”, onde os mortos permanecem (sem que o tempo passe para eles) até o “juízo final”. E por aí vai; estes apenas para citar algumas mais conhecidas.

Como qualquer coisa que os seres humanos não conseguiam explicar no passado (como a tempestade, o sol, a lua, a chuva, a vida, a maternidade, os animais, a seca, as nuvens, as estrelas e tantas outras coisas), a morte acabou seguindo o caminho da personificação antropomórfica, ou seja: eventualmente, alguém teve a ideia (provavelmente para explicar de forma simples a outra pessoa) de enxergar a morte como se fosse uma entidade parecida com o ser humano. Isso provavelmente coincidiu com as crenças sobrenaturais organizadas e as primeiras idéias religiosas; no caso, as civilizações antigas que contavam com religiões politeístas. O Antigo Egito tinha Anúbis e Osíris como “senhores” do reino dos mortos (com algumas diferenças de “funções” entre os dois). Nenhum dos dois era a personificação da morte propriamente dita (sendo apenas os guardiões da realidade pós-morte para onde iam as almas egípcias), embora Anúbis sempre tenha sido considerado o “deus dos mortos”. Na Grécia Antiga, que assim como os egípcios via a morte como parte do ciclo da vida, tinha Tânatos, um homem alado** que era a morte personificada, numa visão nem um pouco agressiva, bem diferente do que a sociedade ocidental conhece hoje. Suas irmãs, as Keres, eram a personificação da morte violenta, aqueles que aconteciam em casos de guerra, doenças, acidentes e assassinatos. Hades era quem reinava sobre os mortos.

Na China e no Japão, Shinigami (“Deus da Morte”) é o nome que se dá à personificação da morte oriental, uma entidade análoga ao “ceifador” da cultura ocidental, isto é; a entidade responsável por coletar as almas dos mortos e levá-las para onde quer que seja. No hinduísmo encontramos o Yama, que aparece originalmente nos Vedas, os textos indianos mais antigos. A história do Yama é curiosa: ele foi o primeiro mortal a morrer, e por conta disso, conheceu os caminhos para a morada celeste e acabou se tornando o regente dos mortos. Yama tem também um “sidekick”, Chitragupta, cujo trabalho é manter registro das atividades de todos os seres humanos na Terra até sua morte, para quando chegar a hora, ele possa recomendar para enviar ao “paraíso” ou ao “inferno”, dependendo de suas ações em vida. Na China, o Yama deu origem ao Yanluo, governante do submundo.

Na Polônia, a morte é Śmierć, representada por uma mulher; na mitologia Báltica, Giltinė é mostrada como uma mulher velha e feia; na mitologia Celta, não há uma “personificação” ou um “senhor” da morte, mas sim a entidade que a precede: Ankou. Sua presença é um presságio da morte da pessoa. E Malach HaMavet é um dos nomes que a Bíblia usa.

A versão que mais conhecemos aqui no ocidente é o “Grim Reaper”, ou Ceifador. Ele geralmente é retratado como um esqueleto, ou um esqueleto coberto por um manto preto, que sempre segura consigo uma foice. Esta versão se tornou popular a partir do século XV e tem sido referência para as representações da morte no ocidente desde então.

É claro que este texto é apenas uma pálida sombra sobre o assunto, e há muitas outras versões de pós-vida, da personificação da morte, e da visão da morte propriamente dita. Mas creio que isso dá uma boa idéia de como o tema é variado e tem sido explorado desde tempos imemoriais, sendo provavelmente tão antigo quanto a própria humanidade. Na próxima matéria***, veremos como a personificação da morte é abordada em algumas obras de ficção.

Curiosidades:
– Historicamente, sempre foi difícil definir o momento exato da morte e até se uma pessoa estava realmente morta. Anteriormente, se definia a parada cardíaca e respiratório como morte, mas com os avanços da medicina, se mostrou que esse conceito não era correto. Hoje, considera-se morte quando as funções cerebrais cessam;
Catalepsia é uma doença rara que causa o enrijecimento dos músculos e faz parecer que a pessoa está morta. Embora hoje nossos equipamentos sejam muito mais sofisticados hoje e registram mesmo o menor sinal vital (e também o fato de que atualmente só é possível enterrar um corpo 48 horas depois da declaração do óbito – tempo para um cataléptico “voltar à vida”), no passado isso gerou diversos problemas, com pessoas tendo sido inclusive enterradas vivas. Provavelmente são casos de catalepsia que explicam o surgimento de diversos mitos de pessoas que voltam à vida, entre eles Vampiros e Zumbis;
– Cientificamente, o principal atributo da morte é sua irreversibilidade. Em outras palavras, o termo “morto-vivo” não faz sentido (cientificamente falando). Se está andando e se alimentando, não pode estar morto. Por outro lado, com o crescente progresso da medicina, caso um dia seja possível reverter a morte, esta característica terá de ser redefinida;
– Há um bizarro vídeo no youtube (infelizmente real) que mostra uma pesquisa feita por cientistas russos durante os anos 30-40 com cães. Nesta pesquisa, os cientistas supostamente conseguiram manter a cabeça (sim, apenas a cabeça) de um cão viva, e conseguiram ressuscitar outros, através de uma técnica criada por eles e explicada no vídeo. O vídeo é impressionante (além de cruel e perturbador – agradeçam que hoje existem direitos dos animais) e foi exibido durante um congresso de psicologia na Rússia. Hoje, os resultados deste vídeo são questionados, e é bem provável que os cientistas não tenham conseguido fazer o que alegaram que conseguiram. De qualquer maneira, o vídeo (em duas partes) está disponível. Tirem suas próprias conclusões (AVISO: pode conter cenas fortes para algumas pessoas):

*Embora Oppenheimer tenha usado essa frase (e tenha sido ficado famoso por ela), ele a retirou do Bhagavad Gita, um dos livros do Mahabharata.
**Evitei usar a palavra anjo porque seria um anacronismo.
**As matérias do Madrugada Macabra se tornaram mensais; é bem possível que outros conteúdos, mais rápidos e curtos sejam postados entre um texto e outro, mas estes posts mais extensos terão intervalos de um mês entre um e outro.

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