O mundo é um lugar grande, cheio de particularidades e diferenças. Mas, mesmo dentro desse caldeirão de pessoas e desencontros podemos encontrar semelhanças onde não pensaríamos ver, sendo necessário para isso talvez só um olhar mais atento. Esse tipo de olhar que o diretor Jim Jarmusch exprime no filme Uma Noite Sobre A Terra, produção americana de 1991.
No filme, Jarmusch, diretor de obras como Dunbailó (1986), Estranhos no Paraíso (1984) e Trem Mistério (1989), fragmenta a narrativa mostrando cinco encontros ocorridos em uma mesma noite, criando histórias curtas envolvendo taxistas e passageiros, tendo como palco as cidades de Los Angeles, Nova York, Paris, Roma e Helsinki.
Em mais de uma hora de história, o diretor trabalha um tema muito recorrente em suas obras: o cotidiano, como pequenos encontros e momentos do dia-a-dia podem ser mágicos e inspiradores. Um adepto do cinema independente, de um caráter mais autoral, onde ver o mundo de outra forma é quase um “mantra”, Jarmusch esmiúça também em suas obras as diferenças culturais existentes principalmente nos EUA, não sendo à toa em “Uma Noite” termos duas histórias passando nesse país, como se dão essas relações culturais e o processo comunicativo entre pessoas de pensamentos diferentes.
No filme em questão, ele usa o aperto, quase sufocamento, proporcionado pelo ambiente interno de um táxi para expor as diferenças entre os personagens e as formas de ver a vida de cada um. Na primeira história, passada em Los Angeles, por exemplo, somos apresentados a duas mulheres, a taxista na faixa dos dezoito anos e a passageira por volta dos quarenta. No pouco tempo em que ficam juntas, a senhora, uma produtora de elenco para cinema, casada e aparentemente não tão feliz com esse casamento, vê na jovem uma vitalidade e atitude possivelmente a muito perdida por ela.
Nessa história, podemos perceber como o contato da passageira com a taxista modifica um pouco sua forma de ver o mundo, com o diretor trabalhando sempre o contraste entre o que quer a jovem e as escolhas feitas pela senhora, além das próprias características pessoais de cada uma, mostrando uma proximidade entre o oposto.
Mas, talvez, a história mais emblemática nesse contexto de diferenciação e forma de se ver as coisas ao redor seja a localizada em “Paris”, onde nos deparamos com um taxista africano que sofre preconceito de seus passageiros também africanos, esses mais bem de vida que ele, e quando recebe uma passageira cega mostra que também guarda um preconceito dentro de si.
É interessante ver nesse curta o jogo de contradições usado pelo diretor não só nas características dos personagens entre si, mas, principalmente, no próprio taxista, que em alguns momentos discursa algo e com atitudes mostra o oposto.
Um exemplo é quando ele exige respeito aos dois passageiros que leva no inicio da história e, mais adiante, quase atropela dois lixeiros sem nem se importar, ou mesmo no desenvolvimento da conversa com a passageira cega onde faz perguntas que demonstram um preconceito formado de como é a vida de um cego e até um auto-preconceito. Certa hora do filme, ele indaga a ela se sabe de que cor ele é, no que ela responde “as cores pouco me importam, eu sinto as cores”.
Esse curta, e o filme em geral, também usa dos preconceitos narrativos que o espectador normalmente traz consigo para pregar “peças”, surpreender, como quando em um dado instante dá a impressão que a cega pode sofrer um acidente caminhando perto de um canal, que passa por sobre uma ponte, mas quem sofre um acidente é o taxista ao partir e bater em outro carro, no que a passageira ouve a discussão gerada pelo evento, sorri e segue caminhando.
Um outro recurso, esse mais subjetivo, que Jarmusch utiliza é uma antecipação de acontecimentos futuros. Na cena em que o taxista está transportando seus dois passageiros iniciais, um deles brinca ao descobrir o país de origem de seu condutor, pois, quem mora em Cote d´Ivoire (Costa do Marfim) é chamado de “Ivoirien”, dividido em francês pode ser lido como “Y voit rien” ou “não vejo nada”. Nisso, ele faz um trocadilho dizendo que o taxista “não pode ver e anda sem óculos”, uma boa referencia a situação futura em que ele se depara com uma mulher que não pode ver realmente e anda de óculos escuros, indo além, uma afirmação que mesmo enxergando o africano não via direito as coisas a sua frente.
Aliás, Noite Sobre a Terra usa muito da subjetividade de discurso, agregada a narrativa mais lenta, contemplativa – como podemos ver nos tempos mortos utilizados, onde é mostrada a cidade-palco, o movimento constante ou não do lugar – talvez como uma dica ao espectador que na observação lenta, atenta, podemos nos aproximar melhor das pessoas e ter um melhor conhecimento do mundo ao nosso redor. É assim, em Helsinki, possivelmente a história mais dramática do filme onde os passageiros e o taxista contam tragédias pessoais, por Nova York, com a troca de papéis entre o passageiro negro não aceito por outros taxistas e o motorista imigrante que ainda não se adaptou a América, em Roma, tendo um Roberto Benini hilário contando sua vida sexual movimentada a um padre.
Por fim, o filme usa do recurso cômico para aliviar toda essa tensão de contrastes entre modos de vida, características pessoais, sacro e pagão, etc., e, assim, poder colocar situações do cotidiano de uma forma mais leve para o público, sem deixar o conteúdo da mensagem se perder. Por todas essas características, o filme de Jim Jarmusch é obrigatório para quem procura, gosta ou admira, um olhar além do óbvio sobre o mundo, tanto dentro do cinema quanto fora dele.