“O maior feito do diabo foi fazer todos acreditarem que ele não existe”
Desde que o ser humano foi amaldiçoado abençoado com o dom da consciência, somos instigados a nos questionar sobre as coisas que acontecem na natureza e com a nossa vida. Nosso destino está escrito? Bondade e maldade são coisas com as quais nós nascemos, ou algo que é aprendido socialmente? E de onde vem o mal? Ele sequer existe?
Tal dicotomia sempre foi o principal tema das religiões monoteístas e tem grande influência histórica principalmente dentro do cristianismo (que representa a maior parte do pensamento ocidental popular), na forma de deus e de seu maior adversário, o diabo. Embora hoje a maior parte dos padres e teólogos admitam que o diabo seja mais uma forma metafórica de ver o conceito de mal como o conhecemos, ainda encontramos um grande número de pessoas comuns que leva a palavra de forma literal, acreditando já ter tido encontros com demônios, ou até já terem sido possuídos (inclusive eu tenho um livro chamado “O Livro dos Demônios”, onde o autor, um padre, alega ter “entrevistado” de verdade diversos demônios). Eu mesmo já tive, em minha família, experiências semelhantes (embora para preservar a integridade das pessoas envolvidas, não possa falar muito a respeito). Será mesmo que tudo isso vem de nossa mente, de nossa vontade de justificar atrocidades que não acreditamos que algum ser humano seja capaz de fazer? Ou existe mesmo algum ser invisível e inalcançável pela nossa percepção e nossa ciência, que move cordas invisíveis e é capaz de nos persuadir a fazer coisas terríveis e nos tornar monstros irreconhecíveis para nós mesmos?
Estas questões não possuem resposta até hoje, mesmo em pleno século XXI. Mas o objetivo desta série de posts não é dar respostas; e sim levantar outras perguntas.
Anneliese Michel era uma garota comum que vivia num pequeno condado no estado da Baviera, na Alemanha, entre os anos 60 e 70. De família com fortes tradições religiosas, Anneliese cresceu com a palavra das Escrituras em sua consciência e levava uma vida pacata e voltada para o estudo e a religião. Mas sua tranqüilidade seria abalada por eventos que ultrapassariam a compreensão de todos ali, inclusive ela própria. Em 1969, quando tinha apenas 16 anos, Anneliese sofreu seu primeiro ataque epiléptico, seguido pouco tempo depois por alucinações, que geralmente aconteciam quando ela rezava. Não demorou para começar a ouvir vozes, entre as quais lhe diziam que era amaldiçoada. Em 1973, Anneliese já estava sofrendo de depressão e considerando o suicídio. Seu comportamento começara a ficar cada vez mais bizarro, rasgando suas roupas, comendo carvão e chegando inclusive a lamber sua própria urina.
Anneliese chegou a ser admitida em um hospital psiquiátrico, mas infelizmente os médicos pouco puderam fazer. Sua condição apenas se agravara e sua depressão ficava cada vez mais profunda. Com o tempo, começou a perceber a dificuldade de tocar, ver ou passar por símbolos religiosos e, por conta disso e de suas origens católicas, uma conhecida da sua congregação atribuiu a condição de Anneliese à possessão demoníaca, ao que fez muito sentido para a jovem, uma vez que compartilhava das mesmas crenças.
Foram 10 meses de tratamento psiquiátrico infrutífero até que, no verão de 1973, os pais de Anneliese foram até a paróquia local solicitando que submetessem a filha ao ritual de exorcismo. À princípio o pedido foi negado, uma vez que a doutrina da Igreja Católica no que diz respeito a essas práticas é muito restrita. Mas um tempo depois, um padre considerado perito no assunto concluiu que Anneliese já reunia condições suficientes para a realização do exorcismo e, após uma “verificação da possessão” (ou o que quer que isso signifique) feita pelo Bispo de Würzburg, foi autorizado o procedimento, que seria realizado por dois padres: o perito que levou o caso à igreja Ernest Alt, e Arnold Renz. Foram, ao todo, 67 sessões de exorcismo durante cerca de nove meses, durante os quais ela muitas vezes tinha que ser segurada por até três homens ou, em algumas ocasiões, acorrentada, o que causou diversas lesões. Além disso, ela própria recusou tratamento e assistência médica durante o período, recusando-se também a comer. Essa sequência de acontecimentos levou posteriormente, em 1976, à morte da jovem, por falência múltipla dos órgãos devido ao estado avançado de desidratação e desnutrição em que se encontrava. Anneliese Michel faria, naquele ano, 24 anos.
Até hoje estes eventos são considerados controversos por diversos motivos. Logo após a comunicação do óbito, tanto os dois padres quanto os pais de Anneliese foram levados à julgamento, sendo condenados posteriormente pela promotoria por homicídio causado por negligência médica. O julgamento do processo ficou conhecido como o Caso Klingenberg, despertando grande interesse da opinião pública alemã, devido à natureza Fé X Ciência do caso (que sempre chama atenção). Enquanto de um lado havia médicos afirmando que Anneliese sofria de um raro quadro clínico que precisava ser estudado e curado, do outro havia a cautela de não culpar as crenças cristãs dos pais de Anneliese pela morte da garota, especialmente numa cidade pequena em que a quase totalidade, se não todos, eram católicos devotos. O tribunal pisava em ovos, mas tinha uma morte nas mãos que tinham uma causa clara. Ninguém sabia o que Anneliese de fato tinha, mas todos sabiam como e porque ela havia morrido.
Embora até hoje a opinião pública – hoje mundial – fique dividida no que acreditar (se na versão sobrenatural ou a médica), uma coisa é fato: Anneliese Michel, uma jovem que poderia ter tido um brilhante futuro morreu por conta, simplesmente, de sua humanidade. Talvez se ela tivesse sido levada de volta à força para um instituto psiquiátrico, forçada a comer e a tomar os remédios, a história tivesse sido bem diferente. Talvez para melhor, talvez para pior. Não dá para saber. E infelizmente, independente de crenças, essa é uma das únicas verdades absolutas da vida: Não há como voltar atrás, podemos apenas aprender com o passado e seguir em frente.
Curiosidades:
– A Igreja Católica possui critérios rigorosos para casos de possessão, que estão compilados no Rituale Romanum, publicação exclusiva da Igreja que lista as condições a serem avaliadas e testadas para se confirmar uma possessão. Em 1999, foi apresentada uma nova versão do livro, revisada e atualizada, que é oficialmente adotado por toda a igreja católica até hoje;
– Posteriormente uma comissão da Conferência dos Bispos Alemães declarou que Anneliese Michel não estava possuída de fato (nota do autor: legal eles terem decidido isso só DEPOIS que ela morreu. Parabéns, campeões);
– O vídeo deste post é extraído das fitas de áudio gravadas durante os rituais de exorcismo, uma das exigências da igreja católica para autorizar o ato. O áudio está no original em alemão e talvez por isso (ou não), ele pareça tão assustador;
– Antes do início do processo, os pais de Anneliese solicitaram às autoridades locais uma permissão para exumar os restos mortais de sua filha. Eles fizeram esta solicitação em virtude de terem recebido uma mensagem de uma freira carmelita do distrito de Allgaeu, no sudoeste da Baviera. A freira relatou aos pais da jovem que teria tido uma visão na qual o corpo de Anneliese ainda estaria intacto ou incorrupto e que esta seria a prova definitiva do caráter sobrenatural dos fatos ocorridos. O motivo oficial que foi dado às autoridades foi o de que Annieliese tinha sido sepultada às pressas em um sarcófago precário. Os relatórios oficiais, entretanto, divulgaram a informação que o corpo já estava em avançado estado de decomposição. As fotos que foram tiradas durante a exumação jamais foram divulgadas.
– Embora a igreja católica hoje admita a não possessão de Anneliese Michel, o Papa Bento 16 abriu um curso para a formação de exorcistas (obviamente, apenas para padres).
Na próxima Madrugada:
Vamos analisar o caso de Anneliese Michel através da ficção, usando uma perspectiva sobrenatural. Na próxima semana, O Exorcismo de Anneliese Michel – Emily Rose.