Lúcifer: Olá, John. John, olá. Você é a única alma da qual eu subiria aqui para buscar pessoalmente.
John Constantine: Foi o que me disseram.
Não foi só o gênero de super-heróis que teve sua fase áurea, os quadrinhos de terror também passaram por um momento de grande produção e muita qualidade em termos de história e arte. Essa era de ouro foi dominada, nos EUA, principalmente por uma editora chamada EC Comics, que publicava essencialmente HQs com temas adultos, desde histórias policias até, obviamente, histórias de terror.
Mas esta era de ouro das Hqs de terror teve fim lá pelos anos 50, por conta de um monstro muito mais perigoso e assustador do que qualquer criatura já imaginada pelo homem: a censura. Um psiquiatra publica um livro em que “prova” que HQs levam a delinqüência juvenil, incitam homossexualismo, sodomia e sadomasoquismo, e que são prejudiciais às crianças. Este mesmo psiquiatra não levou em conta – ou ignorou – o fato de que algumas HQs não eram destinadas ao público infantil (assim como não o são alguns filmes ou alguns livros) e conseguiu levar o governo a promover uma caça às bruxas a todas as editoras de quadrinhos consideradas “amorais”. A EC Comics, por só contar com conteúdo adulto, foi a principal prejudicada, e a caça às bruxas dos quadrinhos enterrou a editora e suas histórias junto com ela.
Por muito tempo, todas as histórias em quadrinhos levaram em suas capas o selo de aprovação do Comics Code Authority, autoridade criada para regular a produção artística de HQs. Aquelas que tinham o selo eram as Hqs “de boa moral”. As que não tinham o selo, não eram publicadas, não pelos nos meios convencionais pelo menos. As histórias de super-herói tiveram que carregar um tom excessivamente infantilóide e bobo para continuarem sendo publicados. A EC não teve como competir e deixou de existir.
Foi só em meados dos anos 70 que os quadrinhos começaram a reagir, quando personagens como Arqueiro Verde e Lanterna Verde lidaram com problemas sociais como drogas e racismo e Homem Aranha falhava em salvar Gwen Stacy. A partir daí, os autores e as próprias editoras começaram a ousar, gradualmente, até as grandes editoras voltarem a publicar histórias de terror. Embora de conteúdo bem menos impactante que seus antecessores da EC Comics, essas histórias abriram a brecha necessária para que o Comics Code aos poucos pudesse ser desafiado.
E então, quando Alan Moore reformulou o Monstro do Pântano, sendo o precursor do que no futuro seria a linha Vertigo (selo da DC Comics onde são publicadas histórias adultas), a DC Comics desafiou o código inclusive publicando as histórias sem o selo do Comics Code, levando adiante a retomada das HQs de terror.
Foi nas histórias do Monstro do Pântano, mais precisamente durante o arco “Gótico Americano” (onde o monstro e uma porção de outros personagens têm que evitar, literamente, o fim de tudo) que surgiu um peculiar personagem chamado John Constantine.
Constantine era um cara detestável. Um loiro britânico à lá Sting, que vivia com um sobretudo de tom pastel, fumante inveterado, com atitude arrogante e sempre enganador, logo arrebatou os leitores por sua atitude e por ser envolto em mistérios. Conhecido nos círculos místicos (embora nem um pouco bem-vindo), inicialmente não se sabia nada sobre ele, apenas que era um cara muito “rodado”, e já havia sido muita coisa na vida, de ladrão à exorcista, passando por roqueiro e paciente de um hospital psiquiátrico.
O personagem fez tanto sucesso como coadjuvante nas histórias do Monstro do Pântano que a DC lançou sua própria série, que se chamou Hellblazer (um termo difícil de traduzir e que pode significar uma porção de coisas). Nesta série, que dura até hoje (apesar de ter sido reformulada algumas vezes) foram revelados detalhes do passado de Constatine que não foram mencionados quando ele era coadjuvante na revista Monstro do Pântano, e que tornaram o personagem mais complexo e interessante.
O sucesso da revista deve muito ao jeito inusitado que as histórias transcorriam. Nós não víamos John Constantine sair no braço com qualquer criatura sobrenatural (até porque ele é apenas um ser humano comum). Sabendo de sua fragilidade mortal, Constantine frequentemente combatia as criaturas sobrenaturais usando sua maior arma até hoje: A sagacidade e habilidade de manipulação. Esse diferencial, aliado ao senso crítico apurado dos autores ingleses que eram escolhidos para escrever as histórias do personagem – e que não raro traziam diversas metáforas e críticas às situações políticas e sociais das épocas em que eram publicadas – foram os principais motivos que tornaram John Constantine um dos personagens mais interessantes da história dos comics.
Um dos grandes momentos do personagem foi durante o arco de histórias “Hábitos Perigosos”, onde Constantine descobre que está com câncer de pulmão devido ao uso constante do cigarro. A história é bastante inusitada, pois faz com que John Constantine, um homem que já havia ido até o inferno, precise enfrentar sua própria mortalidade, pois ele mesmo acabava por condenar sua vida, coisa que nem mesmo Lúcifer em pessoa consegura fazer.
Com o sucesso do personagem, eventualmente ele seria adaptado para outra mídia. Isso aconteceu em 2005, quando Constantine chegou ao cinemas. Estrelado por Keanu Reeves no papel principal e Rachel Weisz como seu interesse romântico, o filme foi relativamente bem nas bilheterias, tendo tomado algumas liberdades criativas – como fazer de John Constantine um americano ao invés de britânico. O filme pode ser considerado como uma versão “mastigada” – e mais “massa veio” – do personagem dos quadrinhos. Bom para conhecer o personagem, mas longe de explorar todo o seu potencial.
A personalidade marcante, as histórias inusitadas e a humanidade do personagem tornam John Constantine um dos personagens mais interessantes já criados e faz de Hellblazer uma das revistas que mais vale a pena ser lida até hoje.
Curiosidades:
– John Constantine foi criado por Alan Moore (Monstro do Pântano, Watchmen) depois que os desenhistas insistiram que ele criasse um personagem obscuro inspirado no visual do cantor Sting;
– Constantine já foi líder de uma banda de rock chamada Mucous Membran (Membrana Mucosa);
– Parte do filme “Constantine” é inspirado no arco de histórias “Hábitos Perigosos”;
– A árvore genealógica do personagem está repleta de antepassados que se envolveram com ocultismo. Entre eles estão Johanna Constantine, enforcada por traição durante a Revolução Francesa, Harry Constantine, que participou junto de Oliver Cromwell da invasão da Irlanda (e que passou cerca de trezentos anos enterrado vivo). Além disso, um Constantine teria sido o sucessor do mítico Rei Arthur;
– Recentemente o brasileiro Rafael Grampá (Mesmo Delivery) desenhou uma edição de Hellblazer;
– Hellblazer segue a tradição das clássicas HQs de Terror da EC Comics, com capas perturbadoras lindamente ilustradas por grandes artistas (algumas das quais ilustram o post).
Na próxima Madrugada:
Um cientista tenta reanimar pedaços do corpo humano…com resultados desastrosos. Na próxima semana, Reanimator.