Uaréva! Camila Téo Cultura do estupro: a atrocidade que a sociedade internalizou

Cultura do estupro: a atrocidade que a sociedade internalizou


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“Corre para pegar o ônibus, corre para chegar logo no local de trabalho, corre para casa, corre em qualquer momento quando se perceber SOZINHA”.

Pode parecer insanidade, mas essa frase, dita inicialmente pelo meu pai,  se tornou recorrente na minha vida desde que comecei a ir sozinha para o meu primeiro emprego, aos 15 anos. É possível que seja também um mantra na cabeça de quase todas as mulheres que você, que está lendo esse texto agora, conhece. Andamos sempre vigilantes, andamos sempre com medo, andamos sempre olhando para os lados, pois nunca sabemos o que pode nos acontecer. Nunca sabemos quando ficaremos sem a nossa bolsa ou carteira, ou ainda quando tomaremos um tapa na cara em um bar ou pior, quando seremos ameaçadas e violentadas. Infelizmente precisamos seguir vigilantes. NÃO É PARANÓIA NOSSA, OK?

Um caso hediondo de violência sexual contra a mulher, noticiado no ano passado foi o estupro coletivo de três adolescentes entre 11 e 13 anos em Castelo no Piauí, onde os 5 cidadãos envolvidos mutilaram as vítimas (sim: eu disse que cortaram as meninas) e uma delas chegou a falecer, sendo jogada pelos agressores em um penhasco.

Já o mais recente que veio a público foi o do estupro coletivo, praticado por 33 homens em perfeita saúde mental e física (não adianta falar que são doentes, pois não são) violentaram uma moça de 16 anos no Rio de Janeiro. Os seres violentaram a garota, fotografaram e postaram em suas respectivas redes sociais. As imagens postadas foram compartilhadas e algumas receberam até comentários incentivadores do ato, o que me leva a entender um pouco melhor quando falam em “Cultura do Estupro” quando estudamos estes casos.

Sempre tive uma enorme dificuldade para entender como um ato tão repugnante se torna uma cultura, o que segundo o dicionário online Caldas Aulete significa:

(cul.tu.ra)

sf.

  1. Agr. Ação, processo ou resultado de cultivar a terra, ou certa planta
  2. Agr. Parte cultivada de um solo, de uma região.
  3. Agr. Produto desse cultivo (cultura da soja/do cogumelo).
  4. Conjunto de atividades voltadas para a criação de plantas e animais: Cultura de cítricos/de abelhas.
  5. Soma das informações e conhecimentos de uma pessoa, ou de um grupo social: Era homem de grande cultura. Aquela gente lia muito, tinha cultura.
  6. Conjunto de costumes predominantes num grupo ou classe social [Cf.: contracultura.]
  7. Antr. Tudo o que caracteriza uma sociedade qualquer, compreendendo sua linguagem, suas técnicas, artefatos, alimentos, costumes, mitos, padrões estéticos e éticos (cultura ianomâni/neolítica).
  8. Panorama de um país no que se refere ao movimento da criação e divulgação das artes, da ciência e das instituições a elas concernentes: Naquelas décadas, a cultura decaiu.
  9. Antr. Conjunto dos valores intelectuais e morais, das tradições e costumes de um povo, nação, lugar ou período específico (cultura asteca/celta/mediterrânea); CIVILIZAÇÃO
  10. A ação e o método de cultivar tecidos vivos, microrganismos etc. em ambiente favorável e controlado
  11. P.ext. Esse ambiente, e os nutrientes que alimentam esses tecidos ou microrganismos
  12. O tecido ou microrganismos assim cutlivados

[F.: Do lat. cultura.]

Cultura de massa

1 Soc. Conjunto dos bens culturais produzidos pela indústria cultural, e os costumes, valores, práticas etc. de largas parcelas da população, difundidos graças aos meios de comunicação de massa.

Cultura física

1 Desenvolvimento e fortalecimento do corpo humano através de ginástica, esporte, atividades físicas etc.

Cultura material

1 Antr. O conjunto dos artefatos de um grupo sociocultural, e das técnicas, conhecimentos, etc. relativos à produção e uso de tais artefatos.

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Tomando como base os itens 5, 6 e 9 da definição trazida pelo dicionário, que falam sobre um conjunto de costumes, a chamada “Cultura do Estupro” é então um costume que se tem de conseguir algo sem o consentimento da outra parte envolvida na ação, então, tem-se por costume forçar a outra parte, de todas as maneiras possíveis e imagináveis, até que ela ceda a força empregada e o ato desejado seja consumado. A pergunta que me faço sempre que vejo essa expressão é: o que leva essa brutalidade a ser chamada de cultura?

Penso então que trata-se da necessidade da satisfação de um capricho, valendo-se do se estabeleceu historicamente por homens que sempre usaram a força, ou seja, sempre violaram os direitos das mulheres e, de certo modo, sempre as estupraram para que conseguissem a satisfação pessoal mesmo que esse nunca tivesse sido o desejo delas. E esse comportamento se tornou aceitável, corriqueiro, costumaz e BUUUMMMMM… Foi inserido na cultura do povo.

Mas não é pelo fato de ter sido “inserido” é que não devemos fazer o movimento inverso, ou seja, criminalizar, condenar, impedir, denunciar esse tipo de ação para que deixe de ser uma questão cultural para ser apenas uma anomalia social, que deve ser abolida da sociedade. Esse movimento também é demorado, pois casos como os dois citados acima ainda acontecem em todos os lugares, e podem estar acontecendo agora , quando uma mulher diz um não e sua vontade é ignorada.

Para que tenhamos êxito nesse movimento de mudança cultural, é necessário se posicionar e agir de maneira coerente com a necessidade de retirar algo que lá atrás fazia sentido (na cabeça de meia dúzia de infelizes), mas hoje não faz mais. Na medida em que compreendemos a necessidade de dialogar com o outro e de respeitar as vontades, opiniões e posicionamentos do outro conseguimos construir uma barreira para este tipo de barbárie. A mudança comportamental é apenas um dos passos para que não tenhamos mais casos como esse.

Pedi aos meninos que fizessem então um pequeno exercício de reflexão sobre o assunto e compartilho abaixo os resultados:

“Não existe justificativa alguma para a covardia. Quando se vira o rosto para não notar o que acontece ao seu redor, você é cumpice dessa violência. Justificar um ato de covardia te torna também um covarde.” (Luiz Carlos Jr. Modesti)

“Todo homem não é um estuprador em potencial, mas o ser homem como existência é uma ameaça eterna as mulheres mesmo quando não é. Tantas vezes eu só caminhava na rua e percebia que uma menina que caminhava a minha frente andava com certo receio, olhando para trás, apressando o passo. Diferente de nós, homens, que não temos esse medo enquanto andamos pela cidade, as mulheres têm o dia todo, sete dias por semana, 12 meses por ano, por não ter como saber se na próxima esquina 1, 2, 10, 30 homens mal intencionados estarão esperando ela. Não dá nem para imaginar como é essa sensação, mas dá para entender o porque que muitas mulheres tem completa raiva do gênero masculino, fazem produtos culturais colocando homens como vilões e monitoram qualquer coisa que possa ser uma agressão a elas, o que os insensíveis chamam de politicamente correto. Combater a cultura do estupro não é ser chato, fascista ou outro termo infantil que aplicam a quem luta contra absurdos diários dessa nossa sociedade machista. 30 homens, 1 mulher, e toda humanidade saiu perdendo no dia de hoje”. (Marcelo Soares)

“É desolador ver um caso desses e mais desolador ainda saber que isso é tão comum. O número 30 chama atenção e ganha destaque porque sim, consegue ser ainda mais  absurdo, mas o estrago de apenas 1 na vida de outra pessoa, que no máximo vira apenas estatística, acontece o tempo todo. Cabe a todo mundo rever sua posicão em atitudes do dia a dia, não adianta achar abominável um caso desses e continuar fazendo outras coisas que de alguma forma incentivam a aceitação ou minimizam o problema disso. Assédio, desrespeito, menosprezo… tudo isso é tolerado na sociedade e culmina no abominável”. (Júlio Cruz)

“Quando era um adolescente, lembro de estar na fila do ponto final do ônibus, esperando para voltar pra casa depois da escola. Tinham duas mulheres na minha frente. Estava olhando pra frente, mas não para elas, quando fui questionado: Tá olhando o que? Fiquei corado e disse que não estava olhando pra nada em especial. Não entendia na época esta atitude, que me pareceu agressiva. Hoje, entendo perfeitamente o porque delas fizeram isso, uma vez que, embora eu não me considere um perigo em especial, o gênero homem o é. Não é possível que, em pleno século 21, este medo não só ainda seja real, como ele seja necessário para garantir a integridade das mulheres. Não consigo sequer imaginar como deve ser viver com este risco todos os dias de sua vida. Isso me entristece e me faz perder um pouco de esperança no futuro da humanidade”. (Fernando Fonseca)

“A culpa nunca é da vítima. Há um costume doentio e cruel da sociedade de tentar justificar os atos dos homens, mesmo que bárbaros, colocando na mulher a responsabilidade pelos atos dos homens. Não é a mulher que não deve usar roupa curta, não é a mulher que deve evitar sair de casa sozinha, não é a mulher que tem que evitar “dar motivo”. Não existe motivo para estupro, além da monstruosidade do estuprador. A culpa é do estuprador. A culpa é da sociedade que justifica o ato do estuprador. A culpa é da cultura machista que naturaliza a violência contra a mulher. A culpa é de cada homem que não se revolta com isso. A culpa é do pensamento que a mulher é algo feito para o homem usufruir. A culpa nunca é da vítima.” (Thyago Moura)

“Geralmente saio do trabalho por volta das 22h e pego dois ônibus. Apesar do horário, considero um trajeto seguro de se fazer, por isso a minha surpresa ao ouvir uma moça responder à amiga sobre o motivo dela fazer um trajeto maior: “Não desço ali porque é perigoso”, referindo-se ao ponto no qual eu descia. Passados dois ou três dias, desci no ponto juntamente com uma moça que desceu na frente.
O trajeto era de mais ou menos 100 metros até o próximo ponto. Fui andando na mesma direção que ela, alguns passos atrás. Num curto trajeto, um cara mexeu com ela, dois carros buzinaram, sendo que um deles diminuiu a velocidade e o passageiro ficou falando alguma coisa que não compreendi, pois estava com fone de ouvido. Daí me veio a frase da moça à mente: “Não desço ali. É perigoso”.

Eu nunca havia parado pra pensar que um trajeto rotineiro poderia ser motivo de preocupação e medo simplesmente pq uma mulher pode se deparar com um desses caras NOJENTOS (sim, essa é a definição).

Daí pensei também em todas as reivindicações que fazem com relação à mulher, coisa que nunca dei muita atenção, é verdade, mas que entre tantas coisas pedem simplesmente por respeito. Uma coisa simples que as vezes temos apenas por ter nascido com um cromossomo Y, mas que aparentemente precisa ser reforçada (principalmente perante seus amigos tão escrotos quanto você) constantemente por meio de palavras, ações e atitudes que constrangem outra pessoa, senão você não é homem.

Bom, se você age assim, saiba que você é homem, sim. Mas apenas biologicamente, socialmente você é um escroto nojento” (Jeffrey Zorzenon)

O Uaréva é contra a “Cultura do Estupro” e respeita as mulheres, respeita a dignidade da pessoa humana e não aceita nenhum tipo de violação de direitos.

Nas redes sociais está acontecendo a campanha pelo fim dessa cultura. Os interessados podem visitar o site Twibbon e podem acrescentar as fotos de seus respectivos perfis a frase “Eu luto pelo fim da cultura do estupro”. Também estão sendo publicadas uma série de postagens com a hashtag #QueroUmDiaSemEstupro, com uma série de mensagens de apoio a campanha pelo fim dessa barbárie e também histórias de meninas que sofreram essa violação, capaz de deixar sequêlas eternas em suas vidas.

Caso você conheça alguém que passou por essa situação, ajude essa pessoa a denunciar o caso, procure a polícia, faça barulho para que essa atitude deplorável não continue a ser tratada como cultura.o continue a ser tratada como cultura.

Mestra em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), fez de uma biblioteca o seu lar, dado o seu costume de comprar livros e lê-los de maneira voraz. Educadora, revisora, tradutora e maluca por cinema e cultura (principalmente a nordestina).

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